sábado, 30 de junho de 2012

Trainspotting, Irvine Welsh

Cuidado, o próximo deve ser você

Irvine Welsh publicou Trainspotting em 1993: a Europa não vivia o caos econômico e a zona do Euro ainda era um projeto que levaria uma década para se concretizar. A Europa ainda era o primeiro mundo soberano, colonizador e mesquinho que sempre foi: pelo menos se o leitor levar em conta a visão dos personagens de Welsh. Para eles, a Europa, e especialmente a Escócia, era de fato o pior lugar do mundo.

Mas o que o romance leva ao leitor vai além da desmoralização política do país bretão e de sua classe burguesa: a quantidade assombrosa de palavrões (Alô jurados da bolsa Funarte, um abraço!) e a mesma proporção de substâncias químicas que correm no sangue dos seus personagens traduzem uma visão pessimista da própria condição humana.

“Fui me picar. Levei décadas pra achar uma veia boa. Minhas filhinhas não vivem tão perto da superfície quanto as de outras pessoas. Quando uma apareceu, saboreei o pico. Ali tinha razão. Cê pega o seu melhor orgasmo, multiplica a sensação por vinte, e ainda fica a anos-luz de distância. Meus ossos secos e quebradiços são aliviados e liquefeitos pelas carícias ternas da minha heroína. A terra voltou a girar e continua assim”.

Mas não se simplifique: pode-se tomar Trainspotting em diferentes caminhos.

O romance é um romance sobre a destruição. Seja pela heroína, pelo álcool, pela AIDS (novidade assustadora no início da década de 1990), os personagens de Welsh caminham em passos firmes para a própria destruição: muitas vezes, conscientes disso. Querem se livrar da babaquice de assistir um programa de auditório, da fatura do cartão de crédito, do carro do ano e da geladeira de última geração: isso os assusta, e não as dezenas de diferentes entorpecentes que aspiram, bebem, engolem ou injetam. A decomposição de personagens com personalidades completamente diferentes traz à superfície do romance uma mensagem do autor: cuidado, babaca, o próximo deve ser você.

Trainspotting é um livro sobre a morte. Nem sempre a destruição das pessoas que Welsh coloca levam à morte. Nem sempre, mas quase sempre. Há uma quantidade de funerais durante o livro, dois bastante marcantes: morte pela combinação Drogas/AIDS e morte pelo exército da Escócia. A morte é inevitável, escolher o jeito de morrer parece para os personagens de Trainspotting uma saída honrosa: Welsh deixa bem claro qual das duas (se houver só duas saídas) ele valoriza mais. Independente disso, o recado é bem claro: cuidado, babaca, o próximo deve ser você.

Apesar da escatologia, dos palavrões, das cenas incestuosas, da constante presença das drogas (especialmente da heroína: o livro pode funcionar como um manual de como produzir e injetar a droga), o cuidado estrutural da prosa de Welsh é bastante notável. É difícil falar em degradação física e moral sem pensar em Bukowski: provavelmente, Welsh o leu. Mas a apuração da narrativa do escocês supera o velho americano, comparações à parte. 

Digo isso por dois motivos: a sucessão de curtos capítulos, com diferentes narradores, com suas diferentes vozes narrativas, garante a loucura do livro (positivo notar que num livro com personagens loucos, a estrutura narrativa também o seja); e a recriação coloquial na prosa é, além de bastante evidente, uma tentativa do autor de afirmar – paradoxalmente, talvez, - sua língua e seu país.

O próprio Irvine Welsh, interpretando um papel no filme de Danny Boyle baseado em Trainspotting  (veja abaixo).

Há que se mencionar a tradução brasileira (edição lida para esta resenha): dois escritores/tradutores brasileiros de renome, Daniel Galera e Daniel Pellizzari, traduziram o romance publicado pela Rocco em 2004, esgotado no fornecedor e hoje considerado raridade por aí (na Estante Virtual, o livro não sai por menos de R$100). Em uma nota na edição, eles comentam a linguagem fonética de Welsh e como ele “procura escrever exatamente como seus personagens falam, registrando seus sotaques, entonações e estilos individuais”. Os tradutores reforçam que evitaram regionalismos brasileiros, e ressaltam a necessidade do glossário ao final do livro.

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Há uma passagem bastante simbólica a certa altura do livro:

“Saboreando a rendição de seu adversário, Renton joga a cabeça para trás de forma presunçosa; depois cruza os braços em um gesto de beligerância triunfante, como vira Mussolini fazer em um antigo documentário”.

Na boa literatura, nada é por acaso. Por que então citar Mussolini? Talvez seja o autor, dando um recado para os leitores por meio de seus personagens, fascistas de si mesmos.

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O livro ganhou fama no Brasil depois que o diretor Danny Boyle o transformou em filme (1996) e fez sucesso por aqui. O protagonista no filme é um jovem e talentoso Ewan McGregor. O próprio Welsh faz uma ou duas pontas como ator, num papel menor. Não estou aqui para criticar filmes, mas depois que eu vi Requiem para um sonho, do Aronofsky, outros filmes cujo eixo se desenvolva sobre drogas parecem menores. Mas vale a pena ver Trainspotting também (no trailer acima, há alguns erros na legenda e os palavrões são incrivelmente censurados, mas...).

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Trainspotting
Irvine Welsh
Tradução: Daniel Galera e Daniel Pellizzari
Rocco (2004)
352 páginas
Preço sugerido: R$43,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Tanto faz & Abacaxi
Reinaldo Moraes
Companhia das Letras (2011)
344 páginas
Preço sugerido: R$25,00

Reedição dos dois primeiros romances do autor da obra-prima Pornopopéia (2009, Objetiva). Talvez a única influência bukowskiana positiva no Brasil. 

quinta-feira, 28 de junho de 2012

O filho eterno, Cristovão Tezza

Quando a coragem faz a literatura

Na epígrafe escolhida para O filho eterno (2007), Cristovão Tezza (1952) usa a frase de Thomas Bernhard para fornecer uma chave à leitura de seu romance: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade”.

Ora, na obra de um autor até então notadamente confessional (mas não biográfico), a mistura de realidade e ficção é tão profusa que não há motivos para deixar claro o que é uma, e o que é outra. O recurso a Bernhard autoriza o leitor a pensar o que quiser nesse sentido. Em O filho eterno, toda a questão se inverte: com uma história claramente verossímil que ignora os limites entre ficção e realidade, a concentração do leitor passa em grande parte à brutalidade do relato.

“Mas não é uma tarefa simples ou fácil”, escreveu o próprio Tezza, catarinense de nascimento e curitibano por formação.

Dono de uma prosa reconhecida desde Trapo (1988) e Juliano Pavollini (1989) (aliás, dois livros escritos e lançados após os acontecimentos descritos em O filho eterno), o autodefinido realista Cristovão Tezza dificilmente ignoraria o fato mais importante de sua vida em sua própria literatura: o filho com síndrome de Down. Se antes ele era apenas uma presença implícita na sua obra, torna-se em 2007 o personagem central do romance brasileiro mais premiado da primeira década do século XXI.

Pelo relato minuciosamente descritivo, percebe-se outra chave do romance: o filho eterno, o personagem principal, portanto, é na verdade o próprio pai, frágil, teimoso, “alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver”. Pai que, num recurso estilístico ousado, torna-se sempre e insistentemente “ele”, nunca “Cristovão”, nunca “eu”. Pai que com uma impetuosidade comovente é desconstruído e humilhado.

No romance, a descrição objetiva que se mistura à carga emocional vai aos poucos traçando duas histórias concêntricas que ainda carregam um subtexto ensaístico: a história do pai e da sua relação com seu filho; a história do escritor; a reflexão praticamente filosófica que o autor faz sobre a família.

Numa sucessão de capítulos curtos, as duas histórias se alternam, muitas vezes paralelas: o desconforto do pai em aceitar o filho, o desconforto do escritor em não ver seus livros publicados; a formação do pai que deve ser um pai especial, a formação de um ser humano que deve ser o escritor. Inevitavelmente, as histórias se encontram, e perceber o encontro é um dos grandes prazeres estéticos deste livro.

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“Qual era mesmo seu filho? — aquele ali, mostrou a enfermeira solícita, e ele sorriu diante da criança imóvel, buscando um ponto de convergência”. A pergunta desse trecho pode ser aplicada a cada página que descreve a relação entre pai e filho até o final do romance. Melhor, quem era mesmo seu filho? Melhor ainda, quem mesmo é o filho?

“Escrever: fingir que não está acontecendo nada, e escrever. Refugiado nesse silêncio, ele volta à literatura, à maneira de antigamente”. E apenas vinte anos depois ele demonstra o ressentimento que na época não era capaz de sentir: “E ele escreve de outras coisas, não de seu filho ou de sua vida — em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho”.

Cristovão Tezza - Créditos: Record
O ensaio quase subcutâneo é potencializado para o personagem pela condição do filho: “ele jamais fará companhia ao meu mundo, o pai sabe, sentindo súbita a extensão do abismo, o mesmo de todo dia (e, talvez, o mesmo de todos os pais e de todos os filhos, o pai contemporiza)”. Se ter um filho, qualquer um, é um misto exagerado de felicidade e preocupação, a chegada do filho Down resolve esta questão para o personagem. O quê de luto pelo nascimento de um filho diferente do esperado é, no mínimo, assustador. Acrescente-se empatia, o leitor se assusta com a sua própria natureza: quem de nós teria sentimentos diferentes destes diante de uma situação assim, pergunta-se.

Escrever este livro demandou coragem. Roupá-lo de ficção, mais ainda. Um personagem de Philip Roth considera incrível a dificuldade das pessoas em conceber que uma história seja fruto da imaginação de alguém. No fundo, incrível mesmo é perceber a coragem de um homem ao imaginar (e então escrever) a mesma história que viveu.

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O filho eterno
Cristovão Tezza
Editora Record (2007)
224 páginas
Preço sugerido: R$37,90

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Patrimônio
Philip Roth
Tradução: Jorio Dauster
Companhia das Letras (2012)
192 páginas
Preço sugerido: R$34,00

Um relato real do autor americano autor de "O complexo de Portnoy" e do personagem Nathan Zuckerman, que trata da relação inversa: ele é o filho que tem que aprender a lidar com uma condição do pai.