domingo, 26 de agosto de 2012

Voláteis e Ainda orangotangos, Paulo Scott

Paulo Scott (Divulgação
Record)
“Eu realmente não sei se sou escritor”. A frase de Paulo Scott, dita no Festival Nacional do Conto deste ano (clique aqui), é emblemática: os personagens dos seus dois primeiros livros de prosa  —  Ainda orangotangos (contos, Livros do Mal, 2003, Bertrand Brasil, 2007) e Voláteis (romance, Objetiva, 2005)  —  também não sabem se são personagens, em última instância, se são humanos. Se sabem, pouco sabem o que de fato estão fazendo.

Uma ideia de fracasso? Talvez, mas segundo o próprio, em uma entrevista ao Jornal Rascunho: “meus personagens lutam para não fracassar. O fracasso é um estigma recoberto pela variação de quem olha: de onde olha e como olha. Pode ser que nem exista.” Na hora, vem à tona aquele aforismo de Kafka (na edição da Penguin-Companhia, tradução de Modesto Carone): “Só aqui o sofrimento é sofrimento. Não como se aqueles que aqui sofrem devam ascender a outro lugar em função desse sofrimento, mas no sentido de que aquilo que neste mundo se chama sofrimento, em outro mundo, inalterado e tão somente libertado do seu oposto, é êxtase.” 

E é este êxtase que se mistura aos sentimentos dos personagens — que parecem guardar um parentesco comum, uma fina linha que os liga, e os sustenta, torna-os a semelhança maior entre os dois livros.

*

Voláteis é um thriller urbano característico: o protagonista é um desenhista ambicioso insatisfeito com o que tem, e os personagens que transitam ao seu redor são de diferentes classes sociais (há, porém, uma preocupação com a classe média), discutem a questão racial e parecem quase sempre fazer as escolhas erradas.

Scott parece não ter preocupações com o lugar do narrador: narra-se a partir de uma terceira pessoa flutuante, frenética, mas de fato tradicional. O foco narrativo acompanha, então, a inconstância das personalidades. Reformulando: se tomarmos o ponto inicial da criação literária como a escolha do narrador (como ensina Cristovão Tezza, no belíssimo “O espírito da prosa), Voláteis começa em suspenso.

A quantidade de diálogos também é bastante notável: muitas vezes, o narrador é quase desnecessário tamanha a agilidade (sem valoração aqui) do texto e das trocas entre personagens. A questão é se isso justifica (se de fato houver a necessidade de uma justificativa) o narrador inconstante.

Há uma vocação poética clara:

“O vapor do chuveiro toma o quarto, seu esfumaçado desarruma o branco do teto, afrouxando as pálpebras de Sabrina, até um flash asfixiado lhe cobrir os pensamentos e escurecer, ensejando entre as vozes embaralhadas do dia algo sobre as linhas da sua mão: um eco que se dilui no barulho do chuveiro, um fosso onde ela precipitará agradecida, no peso da quietude, na proteção fugaz do abandono”

O que não implica necessariamente um valor estético maior ou menor: a poesia pode ser caracterizada com a aproximação do narrador ao autor, portanto, a não necessidade da criação profunda de um narrador ficcional, fato que reforça o discutido acima.

Outro fato que chama atenção no livro são as descrições de roupas:

“Separa quatro dessas peças menos comuns, joga as demais contra a cabeceira. Estende a saia evasê (surpreende-se com a tonalidade laranja do tecido feltrado sobre o branco do lençol), faz o mesmo com a calça de lã cordada, com a blusa amarela de algodão crepom e o corpete vermelho de fibra sintética”

Essa é um exemplo, há outras situações semelhantes. É a tentativa simbólica (ou alegórica) do narrador de nos colocar em contato com aquele mundo que ao mesmo tempo que é tão cruel parece, para o leitor com mais condições, tão irreal.

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O narrador de Voláteis é o mesmo da maior parte dos contos de Ainda orangotangos: o mesmo narrador flutuante, ágil (sem valoração), de frases curtas e que não tem medo de nada, talvez porque não haja tempo para se ter medo, ou não se saiba ter medo: não sei. O que se percebe, novamente, são características semelhantes de narrativa, mas parece evidente que os contos de Ainda orangotangos sobressaem ao  romance Voláteis.

Isso porque a mensagem, antes difusa longamente num romance de duzentas páginas, aqui se concentra em 22 relatos curtos, que raramente ultrapassam as duas páginas, e, na edição da Bertrand Brasil (“revista”), dividem espaço com um prefácio elogioso de José Castello (além das recomendações de Marçal Aquino, Luiz Antonio de Assis Brasil, Charles Kiefer e orelha de Daniel Galera... o que só mostra que o background de Scott é sólido). Essa concentração é positiva para o efeito que o autor (narrador) busca.

O efeito do conto por excelência se faz presente: as narrativas esticam a realidade até o limite da loucura, do fantástico e da irrealidade (oras). O conto que dá título ao livro começa com uma frase que é um recado: “Trinta e quatro de agosto”. O recado também está no conto “Pusilânimes no café-da-manhã”:

“Vou pelo corredor tateando, ainda não me acostumei com o apartamento. Bater de asas, pássaros? Acendo a luz, a sala está infestada de morcegos. Voam em círculo causando uma mancha negra assustadora. Recuo, entro apressado na primeira porta, a da biblioteca. Tranco a porta, tento me recompor, é enorme o pavor que sinto de ratos e morcegos [...]. Alguém bate à porta. Três vezes. Sinto a pressão nas costas. Dou mais uma volta na fechadura e me afasto (troquei os segredos das portas ontem, como pode?).”

O chão que se pisa quando se lê os contos de Scott é o mesmo ar pelo qual os morcegos dentro do apartamento andam: eles são reais, afinal, mas são tão reais que não podem existir, não é possível que existam. A única saída possível: a biblioteca, a literatura. É lá que enfim está a realidade.

Há, é verdade, narradores diferentes nos contos. Em “Insônia postiça” há, por exemplo, um hábil narrador em segunda pessoa, como num diálogo, entremeado por parênteses que são justificativas do interlocutor: o conto seria brilhante se o desfecho não fosse fechadíssimo, intransponível. A violência deste relato, por sua vez, é justificada: há um sentido para a estilização da violência, um sentimento. Coisa que não parece acontecer em “Gentalha”, por exemplo (em que novamente a “realidade” se rompe no limite): “Tranquei-a no banheiro, saí degolando um por um. Os maiores eu esfaqueava mesmo”.

Mas tudo isso pode não fazer sentido nenhum, porque, como diz Daniel Galera na orelha desta edição da Bertrand, “podemos sair de Ainda orangotangos sem entender tudo, mas saímos impressionados”.

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Voláteis
Paulo Scott
208 páginas
Preço sugerido: R$36,00

Ainda orangotangos
Paulo Scott
84 páginas
Preço sugerido: R$29,00

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Habitante irreal (Alfaguara, 2011), o livro mais recente de Paulo Scott, foi recebido como o livro do ano em 2011, apesar de ter recebido uma ou outra crítica negativa, se essa valoração (positiva x negativa) ainda fizer sentido (o que creio não fazer).

E Ainda orangotangos virou filme:



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Se você gostou desses, provavelmente também vai gostar de:

A arte de produzir efeito sem causa
Lourenço Mutarelli
208 páginas
Preço sugerido: R$44,50

O belo romance de Mutarelli tem umas pitadas de loucura, morte e tudo o mais que você vê por aí.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Especial Bukowski

Em 16 de agosto de 1920, 92 anos atrás, nasceu Henry Charles Bukowski Jr, em Andernach, na Alemanha.

Vou reproduzir trechos de obras do velho Buk, que anotei no tumblr. Logo abaixo, algumas considerações e indicações:


“Esse é o problema com a bebida, pensava, enquanto enchia o copo. Se acontece uma coisa ruim, você bebe para esquecer; se acontece uma coisa boa, você bebe para comemorar; se não acontece nada, você bebe para que aconteça alguma coisa.”
— Mulheres (L&PM Pocket, 2011, tradução Reinaldo Moraes)

“I’m glad when they arrive
and I’m glad when they leave
I’m glad when I hear their heels
approaching my door
and I’m glad when those heels
walk away
I’m glad to fuck
I’m glad to care
and I’m glad when it’s over […]”
— Love is a dog from hell (Ecco, 2003)
“A dor chega, BANG, e aí está ela, instalada em você. É real. Aos olhos dos outros, parece que você está de bobeira. Um idiota, de repente. Não há cura para a dor.”
— Mulheres (L&PM Pocket, 2011, tradução Reinaldo Moraes)

“women don’t know how to love,
she told me.
you know how to love
but women just want to
leech.
I know this because I’m a
woman.
hahaha, I laughed.”

— Love is a dog from hell (Ecco, 2003)
“Que tipo de merda era eu? Um sujeito capaz de armar jogadas bem malévolas e alucinadas. E qual a razão? Será que eu estava querendo me vingar de alguma coisa? Até quando eu ia ficar dizendo que era apenas uma pesquisa, um simples estudo sobre as mulheres? Eu estava era deixando as coisas acontecerem sem me preocupar muito com elas. Eu não tinha nenhuma consideração por nada além do meu prazerzinho barato e egoísta. Eu parecia um ginasiano mimado. Eu era pior que qualquer puta; uma puta só toma o seu dinheiro, nada mais. Eu bagunçava vida e almas como se fossem brinquedos. Como é que eu ainda me considerava um homem? Como é que eu ainda escrevia poemas? Eu era feito de quê, afinal? Eu era um marquês de Sade pangaré, sem o gênio dele. Qualquer assassino era mais sincero e honesto que eu. Ou um estuprador. […] Eu entrava na vida dos outros porque eles confiavam em mim. Eu aprontava as minhas cagadas com a maior facilidade. Eu estava escrevendo A história de amor de uma hiena.”
— Mulheres (L&PM Pocket, 2011, tradução Reinaldo Moraes)

"she went up the walk toward her car.
I closed the door.
she knew what she wanted and it wasn’t
me.
I know more women like that than any
other kind.”

— Love is a dog from hell (Ecco, 2003)
“sempre que nos agarramos às paredes do mundo, e na fase mais sombria da ressaca, eu penso em dois amigos que me aconselharam sobre vários métodos de cometer suicídio. que prova melhor de amor e companheirismo? […] ambos escrevem poesia. tem qualquer coisa em escrever poesia que leva um homem pra beira do abismo.”
— Notas de um velho safado (L&PM Pocket, 2000, tradução Albino Poli Jr.)
“Depois virei para eles e disse: “Esta é a minha mulher… a minha mulher… esta é a…” Por fim, tive que me virar para ela e perguntar: “PORRA, COMO É MESMO O TEU NOME?”
— Fabulário geral do delírio cotidiano (L&PM Pocket, 2007, tradução Milton Persson)

*
Algumas considerações:

1.
É complicado julgar a obra de Bukowski. Falar que ele é apenas um escritor compulsivo, barato, superficial,  alcoólatra e poeta mediano é fácil demais. Alçá-lo ao cânone, exagerado. Também é complicado simplesmente encaixá-lo na definição de midcult (segundo Eco, a cultura pequeno-burguesa que falsifica elementos da cultura erudita com fins comerciais). Qualquer análise superficial da vida de Bukowkski, que foi o principal substrato de sua própria obra, garante isso.

2.
Não há dúvidas de que Bukowski pode cumprir um papel deficiente no Brasil: a formação de leitores. Não digo que não haja escritores brasileiros que possam fazer o mesmo, oras, mas a literatura de Bukowski (especialmente a prosa) é de fácil digestão e superficialmente trata de temas que interessam a adolescentes e jovens adultos de maneira geral: sexo e bebida. E aqui o testemunho é pessoal: Misto-quente foi um dos livros que despertou em mim uma paixão fulminante pelos livros de literatura esteticamente ambiciosa.

3.
Dizer que não há, sob o texto de Bukowski, pelo menos uma fina camada de puro lirismo, massa da literatura, é no mínimo má-vontade.

4.
Há que se ler Bukowski.

*
O documentário abaixo, Born into this, do diretor John Dullaghan, tem várias entrevistas, inclusive com o autor, e também passagens das impagáveis leituras públicas.



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Vou indicar três livros de Bukowski, um de cada gênero (romance, conto, poesia, na ordem):

Mulheres 
Charles Bukowski
Tradução: Reinaldo Moraes
320 páginas
Preço sugerido: R$22,00





Ao sul de lugar nenhum
Charles Bukowski
Tradução: Pedro Gonzaga
224 páginas
Preço sugerido: R$38,00





The pleasure of the damned: Poems, 1951-1993
Charles Bukowski
Ecco Press (2008)
576 páginas
Preço sugerido: R$48,30 (aqui).


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Festival Nacional do Conto termina com clima de otimismo quanto à literatura brasileira

Luiz Ruffato e Ricardo Lísias fizeram a mesa de encerramento da segunda edição do Festival Nacional do Conto, em Jaraguá do Sul, e demonstraram grande otimismo quanto ao futuro da literatura no Brasil; o curador, Carlos Henrique Schroeder, prometeu novidades para o ano que vem

Luiz Ruffato, Ricardo Lísias e Carlos Henrique Schroeder, na mesa
de encerramento da segunda edição do Festival Nacional do Conto
Foto: João Chiodini
“Temos que começar a repensar essa história de que ‘brasileiro não lê’, ‘jovem não lê’”. Luiz Ruffato, natural de Cataguases (MG), autor de, além dessa frase e outros livros, do romance Eles eram muitos cavalos (2001) e da série Inferno Provisório, dividida em cinco volumes publicados pela Record, sustenta seu otimismo com muita segurança. “A quantidade de gente participando de eventos literários como esse, no Brasil, é impressionante”, disse, na mesa de encerramento da segunda edição do Festival Nacional do Conto, em Jaraguá do Sul, na noite deste domingo (12).

Mesa que Ruffato dividiu com Ricardo Lísias, escritor paulista que tem, entre outros livros publicados, O livro dos mandarins (2009) e O céu dos suicidas (2012), ambos pela Alfaguara. “Sem dúvida, o cenário para a literatura brasileira está melhorando, sim”, concordou.
           
Formação, projetos e próximos capítulos
Ricardo Lísias e Schroeder.
Foto: João Chiodini
“Tive a sorte de nascer numa família que sempre valorizou a leitura, então a minha formação de leitor foi sem nenhum susto, sem nenhuma pompa”, disse Lísias. Os primeiros livros que encantaram o autor foram os de Monteiro Lobato. Lísias também falou sobre o “incidente biográfico” por que passou e do qual resultou O céu dos suicidas. “Foi uma espécie de impossibilidade de escrever sobre outras coisas, eu tive muita dificuldade de solucionar a questão internamente”, disse o escritor, referindo-se ao fato de um de seus amigos ter cometido suicídio recentemente.

“Eu, por outro lado”, disse Ruffato, “tive uma mãe analfabeta e o meu pai era pipoqueiro em Cataguases, e os dois incentivaram eu e meu irmão a estudar para fazer cursos técnicos”. “Comecei a trabalhar como operário têxtil, e o livro sempre foi algo fora dos meus horizontes”, contou. “Fui influenciado por tudo que li, e ser um escritor creio que foi um acidente na minha vida”. Ruffato também falou sobre o seu projeto literário de retratar a classe operária no Brasil, projeto que, com o último volume da série Inferno Provisório (Domingos sem deus, Record, 2011), está concluído. “Já tenho algumas ideias sobre o que vou fazer daqui para frente, e creio que não será algo relacionado com Inferno Provisório”, revelou.

Diálogos com Carver
A partir de uma proposta do mediador Carlos Henrique Schroeder, os escritores fizeram considerações sobre trechos de um texto do contista americano Raymond Carver, Princípios de um conto.

Luiz Ruffato: "Vou buscar minhas
histórias na memória coletiva"
Foto: João Chiodini
“Só consigo escrever com o corpo todo”, disse Ruffato. “Se eu não me emocionar com aquilo, como o leitor vai se emocionar?”, comentou, dizendo que a epifania tem que acontecer com ele mesmo, com o personagem, e assim existe a possibilidade de existir com o leitor. “Outra coisa: não conseguiria nem sentar para escrever se não soubesse pelo menos aonde quero chegar”, acrescentou. 

Lísias concordou. “Há que existir um sentimento anterior”, disse, “e por exemplo, quando O céu dos suicidas foi publicado, recebi mensagens de pessoas que tinham passado por uma situação semelhante e tido sentimentos parecidos”. Quanto à relação entre conto e romance, Lísias disse que os gêneros obedecem a rigores de naturezas diversas. “Há necessidades diferentes, também, às vezes há que se dar um tiro mais certeiro, às vezes o assunto requer um tratamento mais lento, uma outra densidade”, disse.

“Eu tinha um projeto, quando comecei a escrever, mas não tinha certeza de como poderia executá-lo”, disse Ruffato. “Quando escrevi Eles eram muitos cavalos, a editora falou que não era romance e que ninguém ia entender. O livro ganhou prêmios como romance e já está na 7ª edição, então, naquele momento encontrei a forma para aquele projeto”, afirmou, ressaltando que não é importante ter uma preocupação muito grande com alguma distinção.

Luiz Ruffato ministra oficina de contos em Jaraguá do Sul.
Participantes vieram de Brusque, Rio Negrinho, Florianópolis,
Curitiba, além de Jaraguá e outras cidades.
Foto: João Chiodini
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O escritor Luiz Ruffato também ministrou uma Oficina de Contos, na tarde do domingo em Jaraguá do Sul. A oficina contou com aproximadamente 13 participantes, de diversas cidades de Santa Catarina e Paraná.

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Obrigado por acompanhar o Biblioteca Vertical na cobertura da segunda edição do Festival Nacional do Conto! Se gostou, não esqueça de curtir o blog no Facebook e seguir lá no Twitter.

Assim que as novidades para a próxima edição forem anunciadas, elas estarão por aqui também.

domingo, 12 de agosto de 2012

André de Leones e Luis Henrique Pellanda conversam sobre contos que marcaram suas carreiras

Na noite deste sábado, no terceiro encontro do Festival Nacional do Conto, em Jaraguá do Sul, os dois escritores conversaram sobre a sua formação como leitores, seu envolvimento com o gênero conto e também leram em voz alta trechos de contos que marcaram suas vidas e carreiras

Luís Henrique Pellanda e André de Leones, na enoteca Decanter,
em Jaraguá do Sul, na noite deste sábado (11).
Foto: Carlos Henrique Schroeder

André de Leones (1980) nasceu em Goiânia, é escritor, e seu romance de estreia, Hoje está um dia morto (Record), foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2005. De lá para cá são dois romances e um livro de contos, participação em antologias e inúmeras resenhas em jornais e revistas.

Luís Henrique Pellanda (1973) é escritor e jornalista de Curitiba, cidade de onde tira boa parte do substrato de sua obra de contista e cronista. Estreiou em 2009 com a coletânea de contos O macaco ornamental (Bertrand Brasil), e em 2011 lançou Nós passaremos em branco (Arquipélago Editorial), reunião de crônicas. 

Como havia uma limitação de tempo, cada autor leu e comentou pequenos trechos de algumas poucas obras importantes para eles. De Leones começou lendo um trecho do célebre conto Um dia ideal para os peixes-banana, de J. D. Salinger. “O que me admira no Salinger é a sua habilidade de equilibrar o coloquial e o rigoroso, numa prosa em que não há nenhum ruído”, disse. Em seguida, Luís Henrique Pellanda leu trechos do conto O afogado, de Dalton Trevisan, que curiosamente não se passa em Curitiba, como de costume na obra do vampiro, mas sim no litoral do Paraná.

De Leones leu em seguida trechos do conto O cobrador, de Rubem Fonseca. “O Boris Schnaiderman, num texto sobre este livro, disse que Fonseca prenunciou um certo estado de barbárie, que se hoje vemos por aí, era inimaginável na década de 1970. Hoje em dia, o conto fica até devendo para a crueldade de tudo”. Depois, Pellanda leu na íntegra o curto conto de Murilo Rubião, D. José não era. “O conto é sobre o fato de a gente falar muito sem saber nada”, disse.

Na última rodada, de Leones citou contos de Leandro Sarmatz e de James Joyce. Pellanda concluiu sua leitura falando sobre Sérgio Sant’Anna (“Um contista puro-sangue, apesar de também escrever romances e novelas, mas um grande gênio) e Antonio Fraga (“Totalmente esquecido, infelizmente”).

Formação e próximos capítulos
“Tive sorte porque a minha mãe sempre foi uma leitora, então havia muitos livros na minha casa”, disse de Leones. “O engraçado é que na mesma semana que ela lia alguém como Sidney Sheldon e Harold Robbins, em seguida eu a via lendo Camus”. O autor disse que a sua primeira leitura marcante foi o conto Emma Zunz, da coletânea O aleph, de Jorge Luis Borges. “Ao ver que ele brincava com a forma, ao misturar ficção, ensaio, crítica, aquilo me deu vontade de errar as minhas próprias coisas também”.

Já Pellanda disse ter tido sorte por despertar a sensibilidade de seus pais que, antes de serem leitores compulsivos, perceberam no filho o “jeito” para escrever. “Eles então fizeram duas coisas por mim: me matricularam no curso de um grande artista de Curitiba e fizeram a assinatura do Círculo do Livro”. A partir dessa assinatura, em que um livro por mês era entregue em sua casa, ele começou a ler os grandes autores. “Lá em Curitiba também não é possível negar a herança que Dalton Trevisan nos deixou”, acrescentou. “A cidade criou uma mítica em volta de um escritor, é impressionante”, disse, contando que nas primeiras vezes que leu os contos de Trevisan percebeu que era possível escrever literatura em Curitiba. “Daí fiquei até os 30 e poucos anos tentando, até publicar O macaco ornamental”.

Sobre a sua própria produção, de Leones disse que nunca parou de escrever contos, embora seus dois livros mais recentes sejam romances. “Mas eu também publico em antologias, apesar de a editora estar querendo uma nova coletânea de contos meus”, disse. “Gosto de sentar e pensar livros de contos que tenham organicidade”. Sobre trabalhar em casa, apenas com literatura, o autor disse que tem que haver muita disciplina: “Caso contrário, posso procrastinar facilmente por uns sete ou oito anos”, brincou.

“Quando vou escrever”, disse Pellanda, “já sei o que quero colocar ali, tento colocar uma ordem na maneira que vou dizer, e então sento já sabendo o que quero escrever”. Durante o processo, segundo o autor, coisas acontecem, mas ele diz que só começa se souber onde quer chegar. E concluiu: “Não vou virar romancista, não quero, não vou”.

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Hoje, às 19h, no SESC Jaraguá do Sul, Luiz Ruffato e Ricardo Lísias fazem a mesa final da segunda edição do Festival Nacional do Conto. Acompanhe!

sábado, 11 de agosto de 2012

Princípio do conto como poesia marcou segundo encontro do Festival Nacional do Conto

Paulo Scott, Luiz Felipe Leprevost, Carlos Henrique Schroeder e parte do bom público que compareceu ao SESC Jaraguá do Sul.
Foto: João Chiodini

Paulo Scott é escritor gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, e que publicou livros por diversas editoras, as mesmas que agora esperam ansiosamente seus próximos trabalhos. O mais recente, Habitante irreal, publicado em dezembro de 2011 pela Alfaguara, foi considerado o livro do ano. Scott se diz essencialmente um poeta: “Sou poeta e comecei a escrever poesia porque era gago”. A simplificação exagerada revela uma das camadas de um Scott ficcionista: alguém que soube aproveitar a literatura, tomar conta dela e deixar-se tomar conta por ela, ao abandonar uma carreira no Direito que tinha encaminhado sua vida. 

Luiz Felipe Leprevost nasceu em Curitiba, em 1979, e, segundo o próprio, foi criado num clube. Tinha tudo para ser apenas mais um piá de prédio. Mas não foi: foi é morar no Rio de Janeiro, fez uma graduação em Artes Cênicas na Casa de Artes de Laranjeiras (CAL), se fascinou com Vinicius de Moraes e se transformou ele mesmo num poeta. Desde então, publicou livros por editoras de Curitiba e de outras regiões (o mais recente é E se contorce igual a um dragãozinho ferido, pela Arte e Letra), cavou seu lugar na literatura brasileira contemporânea, e usou do conto como fonte e fim de seu trabalho multifacetado, que envolve numa grande proporção teatro e música. “No começo, eu era apenas um ator que subia em um palco, bêbado, e declamava poemas, e queria ser... Jim Morrison”.

Foram as duas figuras que fizeram a segunda mesa do Festival Nacional do Conto, nesta sexta-feira. Mediados por Carlos Henrique Schroeder, os autores conversaram, de forma descontraída, sobre as suas formações como leitores, sobre o papel que o conto exerce nas suas obras e sobre como dois poetas auto-declarados enveredaram para os caminhos da prosa.

Paulo Scott: "O mercado fechado para o conto é
apenas uma questão de ciclo". (Foto: João Chiodini) 
“Antes de tudo”, disse Scott, “quero dizer que a literatura brasileira não seria tão interessante se não houvesse iniciativas de algumas pessoas que querem dividir suas experiências, como acontece com este Festival”. Para ele, é difícil acreditar que haja escritores que alimentem preconceitos do tipo “não leio certo autor porque ele organiza eventos literários”. Citando vários autores contemporâneos, Scott disse que o seu trabalho não funciona se não houver um diálogo constante com eles. “Lendo os contemporâneos, aprendo mais do que lendo os clássicos”, disse.

Falando sobre a sua formação como leitor, Scott lembrou que tinha que buscar uma forma de expressão, uma vez que era uma criança muito tímida. “No Brasil, um cara que me inspirou muito foi o Paulo Leminski”, disse. O mesmo Leminski da Curitiba de Leprevost: “Além de um gosto por poetas portugueses, minha principal referência foi Vinicius de Moraes”, disse o curitibano, não sem declamar, com propriedade, um poema de Camilo Pessanha. “A partir de Vinicius, eu me viciei nesta intolerância com o tédio existencial, nesses lugares que nos deslocam da vida comezinha”, disse.

Leprevost também falou sobre a influência da sua cidade natal, Curitiba, sobre a sua obra e de sua geração. “Nós desmistificamos a autofagia que supostamente existia em Curitiba”, disse. “Mas é claro que temos as nossas influências, algumas origens bastante enraizadas”, afirmou Leprevost, referindo-se especialmente a Manoel Carlos Karam, que foi seu amigo e mentor. 

“Eu escrevo tentando manter uma coerência com as minhas leituras”, afirmou Scott, “mas eu realmente não sei se sou escritor”. “A literatura mexe com a sua cabeça de uma forma que as outras coisas não mexem”, completou. Bastante presente no Twitter, Scott ainda disse estar preocupado com a padronização que a internet promove. “Estamos ficando preguiçosos, e é quase um milagre que as pessoas se entendam”.

Gosto pela poesia
Leprevost: "Na escrita, há sempre a presença
de um imponderável". (Foto: João Chiodini)
Leprevost ressaltou que a primeira voz literária que encontrou em si mesmo foi como poeta, numa mistura entre a influência que teve de poetas portugueses do século XIX com os concretistas brasileiros do século XX. “Por uma dica de um amigo escritor, comecei a perceber uma voz narrativa naquelas poesias”, disse. “A partir daí, mergulhei na obra de alguns contistas, principalmente americanos, como Raymond Carver, John Fante e J. D. Salinger, que eu considero um dos grandes artistas de todos os tempos”.

Scott também revelou que a sua voz literária primeira é a de poeta. “Mas os contos pagam as minhas contas”, disse, ressaltando que a vida profissional de escritor muitas vezes depende de contos escritos para revistas e jornais, por exemplo, e apresentações e orelhas de livros de outros autores. “O problema é quando me empolgo e faço de graça...”, brincou. Ainda num tom bem humorado, deu um conselho para escritores e envolvidos com literatura: “Não tenham inveja, porque a inveja mata, segurem a onda”. “Ninguém vai escrever a obra-prima do século dizendo ‘puta, estou quebrando tudo’.”

“Uma boa peça de teatro te derruba, muda sua vida”
Assim disse Scott quando questionado sobre a influência do teatro sobre a sua obra. “É parecido com a poesia: quando você acha um bom poema no livro, ele já vale a pena. Ver uma peça de teatro que te pega, te derruba, muda a sua vida”.

Leprevost, que tem uma formação de ator, disse que lia os textos teatrais dos autores canônicos, como Beckett e Ibsen, como a própria encarnação dos autores. “Infelizmente, ou não, o teatro me condenou a tê-lo em mim para sempre”, disse. 

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Hoje, às 18h, na enoteca Decanter (Av. Marechal Deodoro da Fonseca, nº1118, sala 101), em Jaraguá do Sul, acontece o terceiro encontro do Festival: André de Leones e Luís Henrique Pellanda fazem a mesa "Conto ao vivo/Conto ao vinho". Acompanhe!

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Impossibilidade da arte é tema no Festival Nacional do Conto; bate-papo com Carrascoza fechou o primeiro encontro


Noite de abertura do segundo Festival Nacional do Conto. Plateia cheia e Elvira Vigna ao fundo. (Foto: Carlos Henrique Schroeder)
Quem já viu Elvira Vigna ao vivo sabe que Elvira Vigna ao vivo é complexa como as estruturas que ela aplica aos seus romances. Mas quem já a leu também sabe que desvendar tais estruturas, ainda que superficialmente, de leve, proporciona um prazer literário fascinante: o mesmo raciocínio pode ser aplicada à conferência que a autora carioca (radicada em São Paulo) ofereceu na abertura do segundo Festival Nacional do Conto, em Jaraguá do Sul, Santa Catarina (leia mais abaixo).

João Anzanello Carrascoza é redator publicitário e professor universitário, e com algum macete paulista conseguiu arranjar tempo para construir uma carreira literária de contista das mais reconhecidas no país. Alfredo Bosi, Cristovão Tezza, João Silvério Trevisan, Ronaldo Correia de Brito e Nelson de Oliveira são alguns dos nomes que andam junto com Carrascoza nas orelhas elogiosas de seus livros. O mais recente, Aquela água toda (2012), foi lançado pela Cosac Naify numa edição caprichada. Na primeira noite do Festival Nacional do Conto, Carrascoza falou da sua formação como leitor, da vida literária profissional e também da sua ideia sobre o gênero conto (leia mais).

Ao fundo, Elvira.
(Foto: Carlos Henrique Schroeder)
A impossibilidade da arte
Antes de se falar qualquer coisa, fica o recado para leitor: a conferência que Elvira Vigna proferiu em Jaraguá estará no seu site pessoal em breve. (Atualização 11/08: O texto saiu neste sábado, no caderno Prosa, do jornal O Globo)

Em um diálogo insistente com o pintor francês Edgar Degas (1834-1917), Elvira teceu uma definição muito própria do gênero e explicou a sua relação com ele. Para ela, o conto é mais imagem do que palavra. “Imaginar Degas, um obsessivo por limpeza, misógino, dentro de uma sala escura: isso é um conto”, disse.

Elvira ressaltou que a obra do pintor francês, além de ter uma preocupação constante com a sua própria essência como arte, também aponta para uma quebra de linguagem, um espaço em que as palavras (ou a representação artística visual) não querem dizer mais nada, ou não conseguem. “Como somos todos linguagem”, refletiu, “isso é grave”.

Fotografia tirada por Degas, em que estão Mallarmé
e Renoir. Ao fundo um espelho. Uma tentativa
(frustrada?) do artista perceber si próprio em sua obra.
Há, para Degas segundo Elvira, uma dificuldade em perceber o si próprio na obra, uma ambivalência: “Se aquilo que você faz, você faz para provar que não existe... é complicado”, porque no fundo há um mal-estar sempre presente no fato de se admitir como criador artístico. A escritora exemplificou: Degas, que inevitavelmente era pintor, entrava em seu ateliê de pintor, e pintava autorretratos, representando si mesmo com roupas formais, terno e gravata, as quais, evidentemente, não são usadas por pintores na hora de pintar. Há uma contradição implícita.

Ao mesmo tempo para a literatura. Piglia citou Tchekhov, e Elvira lembrou-se dos dois e da história do homem que ganha um milhão, volta para casa, e se mata. “Não há explicação: quanto mais se explica, mais se dilui, mais se está longe do impacto”.  Questionada sobre a sua visão de um romance (afinal, Elvira é essencialmente uma romancista), a autora disse que o romancista é mais teimoso. “O grande contista sabe que vai fracassar, e para no caminho. O romancista quer colocar um antes e um depois, que nem eu, e acaba com um livro maior”.

A conclusão do seu ensaio ao vivo, que cita um trecho de um romance seu de 1997 (Assassinato de Bebê Martê, publicado pela Companhia das Letras), é arrebatadora. Merece ser lida.

“A ideia do conto é pintar uma cena, apreender um instante”
Carrascoza lê o conto inicial do seu livro
Amores Mínimos.
(Foto: Carlos Henrique Schroeder)
Num tom mais informal, numa mesa mediada por Carlos Henrique Schroeder, João Anzanello Carrascoza, que também esteve presente como convidado na última FLIP, reforçou o que já havia falado naquela ocasião: a sua ideia do gênero passa por uma tentativa de apreensão de momentos, muitas vezes epifânicos, de ruptura. “Drummond falava que há reservas de poesia no mundo: por que não buscamos isso com mais frequência?”, questionou o paulista nascido em 1962.

O autor também retomou a sua proposição de conto-riacho, esclarecida em um texto publicado na edição nº 4 do jornal Cândido. Conclui Carrascoza naquele texto, que teve suas ideias reforçadas nesta quinta-feira: “Em outras palavras: o riacho, em sua nascente, já é atraído pela sua foz. Qualquer conto é, portanto, metáfora da existência, apreendida numa metonímia. Riacho-instante”.

Sobre a sua preferência pelo conto, Carrascoza foi pragmático. “Eu trabalhava em agência de publicidade: saía de casa 9h da manhã e voltava depois das 23h. Eu tinha que desenvolver histórias que em poucos dias, no curto espaço de tempo que eu tinha para escrever, antes das 9h, estivessem concluídas. Se não, tinha que mudar de agência, procurar outro trabalho, porque aqueles personagens ficavam ali, me perturbando por semanas”.

“O conto então passou a ser o meu habitat”, disse o autor que também tem romances publicados, mas que são encaixados na área infanto-juvenil. O escritor também falou sobre a crítica literária. “A crítica precisa colocar a obra em ação com o público, se não fica difícil”, disse, dando a entender que o espaço destinado à literatura contemporânea é insuficiente.

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Nesta sexta-feira, às 20h, no SESC Jaraguá do Sul, o Festival Nacional do Conto recebe Paulo Scott e Luiz Felipe Leprevost, para um bate-papo que discute as relações do conto com outras formas de expressão. Mais informações aqui.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Carlos Henrique Schroeder: "A ideia é deslocar um pouco o eixo do debate"

Do twitter @xroeder
De hoje a domingo, acontece em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, a segunda edição do Festival Nacional do Conto. Escritores de vários estados estarão na cidade da região nordeste de Santa Catarina (50 km de Joinville) debatendo o gênero que no senso-comum-literário pouco vende, mas que no Brasil carrega uma tradição fortíssima. Mais recente vencedor do Prêmio Camões, prêmio considerado o maior da língua portuguesa em todo o mundo, o curitibano Dalton Trevisan investiu sua carreira literário no gênero, inclusive na reinvenção dele. Curitiba também cede dois autores para a próxima edição do Festival: Luís Henrique Pellanda e Luiz Felipe Leprevost.

Além dos dois conterrâneos, estarão em Jaraguá Elvira Vigna, João Anzanello Carrascoza, Luiz Ruffato, Ricardo Lísias, Paulo Scott, André de Leones e... Carlos Henrique Schroeder, é claro.

Também escritor e uma das referências do meio literário virtual brasileiro, Schroeder é o idealizador e curador do Festival em Jaraguá. Seu livro mais recente, As certezas e as palavras, publicado em 2010 pela Editora da Casa, venceu o prêmio Clarice Lispector, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional. O livro está disponível online neste link.

Na entrevista a seguir, concedida ao blog, Schroeder fala, entre outros assuntos, sobre a sua ideia de deslocar o eixo geográfico do debate sobre literatura, o caminho sem volta da pulsão criativa, e de panelinhas literárias: “panelinhas existem em todas as áreas. Jesus Cristo tinha a dele, não tinha?”.

Biblioteca Vertical: De cara: conto vende pouco e Jaraguá do Sul não está no centro do cenário editorial brasileiro. O que o Schroeder curador busca de um festival nesta cidade e que tem como centro um gênero com pouco apelo comercial?

Carlos Henrique Schroeder: Bom, a ideia é bem essa, deslocar um pouco o eixo do debate, trazer as discussões para o sul do país, que não tem grandes festivais literários, tampouco um número expressivo de grandes editoras. Venho estudando o conto há mais de uma dezena de anos e cada vez mais me embrenho numa floresta escura e perigosa. O fato é que eu quero que mais pessoas entrem nesta floresta comigo. O conto foi ignorado por anos pelas grandes editoras, e vários prêmios ignoram o gênero (como o São Paulo) ou fazem a asneira de misturar conto e crônica, como o Jabuti e o Portugal Telecom.

BV: Ainda falando do conto como gênero. No jornal Cândido (nº 4, de novembro passado), o contista Luís Henrique Pellanda (que não por acaso participa da próxima edição do Festival em Jaraguá) diz que o conto dele não quer nocautear ninguém, mas antes “se acomodar dentro dos leitores e de suas casas. Fazer parte da mobília e da memória de cada um. Misturar-se à tralha pessoal que, a um só tempo, nos humaniza e individualiza”. Como contista e curador de um festival cuja temática é o conto, sua ideia do gênero se aproxima dessa reflexão?

CHS: A minha ideia de conto é minha ideia da literatura, uma ideia de deslocamento, de movimento. Há alguns anos venho estudando os processos criativos de alguns escritores, e cada vez mais me embrenho num caminho sem volta. Os fatos que impulsionam um escritor são sempre diversos, mas o que o arrasta para a escrita é sempre a pulsão criativa. Escrever é imperativo, uma necessidade, isto é certo.

Enquanto tentava formular uma teoria própria sobre o fazer literário, me deparei com uma entrevista do escritor argentino Juan José Saer, que resume em um parágrafo todo o dilema da literatura: “Há duas teorias sobre a escritura: uma afirma que ela está sempre no final e outra que está sempre no princípio. A primeira diz que a escritura é o corolário da experiência, que à medida que nos tornamos mais velhos adquirimos mais experiência e escrevemos melhor, e a segunda, a teoria da produção textual, diz que o texto gera seu próprio sentido. Poderíamos dar o exemplo de Goethe, que escreveu muitíssimo aos seus 70 anos, mas também podemos dar o exemplo de Rimbaud e Lautréamont, que escreveram seus textos mais sublimes quando ainda jovens, Rimbaud antes dos 19 e Lautréamont aos 21 ou 22 anos. Creio que as duas teorias têm algo de verdadeiro e algo de falso: a experiência não assegura o valor de uma escritura e a produção textual que não está controlada pelo intelecto não funciona autonomamente. A teoria da escrita automática pode ser válida para certos textos, mas deixa fora uma imensa maioria.”

BV: Muito se fala, à luz de uma ou outra antologia, da formação de panelinhas literárias, que muitas vezes resvalam na organização de eventos como o Festival Nacional de Contos. Como você analisa esse tipo de formulação? Ela tem alguma relação com a localização, digamos, geográfica dos escritores e profissionais da literatura?

CHS: Panelinhas existem em todas as áreas, culturais ou não. Jesus Cristo tinha a dele, não tinha?  Mas o bom curador deve ficar atento, pois ele serve ao evento, e não às panelinhas. E a tarefa do curador de um evento literário é sempre ingrata, pois tem que lidar com o ego de escritores. E você sempre acaba desagradando algumas pessoas, isso é normal em qualquer escalação: no futebol ou numa antologia.

BV: Você é hoje em dia uma referência no cenário da literatura brasileira que tem como a internet seu principal meio de divulgação. Essa atuação, especialmente em redes sociais, é fundamental para escritores da sua geração?

CHS: Eu sou de uma geração que nasceu na década de 1970,  viveu a popularização do videocassete, do DVD, do vídeo-game, do micro e da internet. Uma geração que foi radicalmente influenciada por tudo isso. Eu sou viciado no twitter, tenho que ficar me policiando para não ficar o dia inteiro nele. Tenho uma boa relação com ele, já não me dou tão bem com o Facebook, talvez não tenha filtrado bem.  Acho que as redes sociais são imprescindíveis como ferramenta de marketing para os autores. Mas aí você diz, fulano de tal não tem twitter nem face, mas podes observar, a editora dele tem e não cansa de usar para divulgar. Vivemos em outros tempos, e temos que usar as ferramentas disponíveis a nosso favor.

BV: Nunca tivemos um mercado editorial tão aquecido: falando além dos best-sellers, vários escritores com ambição estética hoje conseguem viver da literatura e de seus objetos (palestras, oficinas, eventos). Porém, não se pode dizer que as vendas desses mesmos escritores ultrapassem com frequência a tiragem inicial. Dá pra explicar essa contradição?

CHS: São raros os escritores no Brasil que vivem de direitos autorais, o mais comum é viver de cursos, palestras, aulas, projetos ou de outros trabalhos. E não há nada demais nisso, vejo no caso da música, quando a era das gravadoras terminou, com o download de músicas, os músicos se adaptaram rapidamente, vivendo de shows, licenciamentos etc. Um escritor ganha em media 10% do preço de capa de um livro, mesmo se ele vender 3.000 exemplares de um livro de R$ 30,00, só terá R$ 9.000,00 de direitos a receber. Mas ele demorou um ano para escrever o livro e outro ano para vender isso tudo, então temos R$ 9.000,00 dividido por 24 meses. Menos que R$ 500,00 por mês.  O fato é que não é fácil ser escritor num país como o Brasil, que quase não lê literatura contemporânea brasileira.

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Serviço
Festival Nacional do Conto
Jaraguá do Sul (SC)
De 9 a 12 de agosto de 2012

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O autor deste blog estará em Jaraguá do Sul cobrindo as mesas e o evento. Acompanhe!

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Areia nos dentes, Antônio Xerxenesky

Falar em zumbis é correr um risco bastante perceptível: denominá-los fenômeno e produto do mercado norte-americano de games e filmes, um simples produto da indústria cultural, é o caminho mais fácil (falo, claro, de manifestações artísticas, no sentido mais amplo possível, deixando de fora questões religiosas, que pelo que parece são as origens de fato do mito zumbi). Games como Resident Evil e o mais recente Left 4 Dead e filmes aos montes retratam os zumbis como se conhece: mortos-vivos com buracos na face, babando alguma coisa nojenta, malucos para comer um pedaço de carne humana a qualquer custo.

Por outro lado, a coisa mais parecida com zumbis que se produziu na literatura brasileira do século XX, salvo engano, foi a revolta dos mortos no monumental Incidente em Antares, do gaúcho Érico Veríssimo. Em Antares, os mortos insepultos, porém, não são burros e sedentos por carne humana, antes, fazem uma análise sociológica e política de sua época, provocam uma revolução por baixo dos panos, e o resto você confere lendo o livro por aí.

É também de um autor gaúcho a experiência com zumbis tema desta resenha: Antônio Xerxenesky (1984) escreveu e lançou Areia nos Dentes em 2008 pela Não Editora, uma editora independente que criou junto com cinco amigos e que hoje em dia já tem um catálogo respeitável. Relançado pela Rocco em 2010 (com um cuidado gráfico bastante apurado, capa e edição) com uma orelha elogiosa escrita pelo Daniel Galera, o livro também foi finalista do Prêmio Açorianos.

O próprio Galera lembra, na orelha desta edição, que a temática zumbi carrega nas costas uma legião de fãs de histórias que simplesmente deram certo: discutir esteticidade nesse campo pode não ser uma boa ideia, porque além de correr o risco de contrariar muita gente, a discussão pode ser simplesmente deixada de lado. Não há dúvidas, histórias com zumbis tendem a dar certo.

Mas falando em literatura com ambição estética séria, o público é diferente daquele que usualmente curte zumbis (os gostos, é claro, não são excludentes nesse caso, mas...). Portanto, é no mínimo ousado que um escritor com pretensão artística escreva sobre... zumbis. Mas, e esse é o ponto alto, Xerxenesky não escreve sobre zumbis: ele os utiliza como uma estetização de um sentimento profundo e muito humano, relacionado à morte, que em muitos outros livros está retratado de maneiras diferentes.

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Trecho: 

“Ela caminhou para longe da sombra. O relógio bateu três horas da tarde. Os cabelos dela reluziam na claridade do dia, e qualquer traço de idade desapareceu, como se ela tivesse sido congelada aos dezesseis anos. Ela piscou e o mundo de Thornton chegou ao fim, para sempre devastado pela imagem de Maria contra o sol, irradiando”.

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Antônio Xerxenesky (Foto: André Hilgert)
O fato é que os zumbis compõem uma parte bastante superficial de Areia nos Dentes (mas é tamanho o fascínio e a desconfiança que eles a princípio exercem que se considerou importante esclarecer), assim como o faroeste que lhe dá nome e boa parte do conteúdo: outra ousadia do autor, que aqui pode também ser interpretada como uma pirotecnia arriscada, foi montar personagens mexicanos, numa história que se passa no México. 

Agora é necessária uma explicação: o grande destaque do livro (que inclusive valida todas as pirotecnias temáticas) é a sua estrutura. As perguntas “quem narra” e “por que narra”, geralmente bastante necessárias hoje em dia, estão o tempo todo rondando a obra, e as soluções que o escritor busca raramente deixam a desejar. O que se percebe durante a leitura de Areia nos Dentes é a proposta estética e o domínio de um estilo bastante evidentes.

Quanto aos personagens mexicanos, nada de errado, mas a probabilidade de que eles tenham um tratamento mais superficial é maior quando se escreve sobre um ambiente, digamos, longínquo. É claro que não se podia escrever um faroeste no Brasil, mas o ponto é que aquele que, no livro, narra o faroeste, e que está nos dias atuais, também é mexicano. Se o narrador fosse porto-alegrense, como o autor, ele certamente seria mais complexo.

Outro porém presente no texto é o uso de frases exageradas, que batem de frente com a leveza com que o livro é narrado. Para citar um exemplo, lá na página 37 o narrador diz: “A força da regurgitação inundou os olhos de Juan com aquela água salgada que convém chamar de lágrimas...”. Um editor mais cuidadoso daria conta de uma frase como essa e evitaria o tropeço no texto.

Mas, citando Daniel Galera: “Eis tudo que você precisa saber sobre Areia nos dentes: tem zumbis no meio”.

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 “Os mortos não ficam onde estão enterrados”. A frase de John Berger serve como epígrafe de um romance de Edney Silvestre, mas também serve a Areia nos Dentes, como um mantra quase inaudível, mas que no fundo, sob as camadas da narrativa estrutural bem sucedida de Xerxenesky, se faz ouvir, muito claramente.

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Areia nos dentes
Antônio Xerxenesky
144 páginas
Preço sugerido: R$24,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Se um de nós dois morrer
Paulo Roberto Pires
124 páginas
Preço sugerido: R$36,90

A estrutura narrativa também é neste livro um fator relevante na estética do autor, que, segundo o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, "tão vila-matasiana quanto – ou talvez mais do que – a obra do próprio Vila-Matas".