domingo, 26 de agosto de 2012

Voláteis e Ainda orangotangos, Paulo Scott

Paulo Scott (Divulgação
Record)
“Eu realmente não sei se sou escritor”. A frase de Paulo Scott, dita no Festival Nacional do Conto deste ano (clique aqui), é emblemática: os personagens dos seus dois primeiros livros de prosa  —  Ainda orangotangos (contos, Livros do Mal, 2003, Bertrand Brasil, 2007) e Voláteis (romance, Objetiva, 2005)  —  também não sabem se são personagens, em última instância, se são humanos. Se sabem, pouco sabem o que de fato estão fazendo.

Uma ideia de fracasso? Talvez, mas segundo o próprio, em uma entrevista ao Jornal Rascunho: “meus personagens lutam para não fracassar. O fracasso é um estigma recoberto pela variação de quem olha: de onde olha e como olha. Pode ser que nem exista.” Na hora, vem à tona aquele aforismo de Kafka (na edição da Penguin-Companhia, tradução de Modesto Carone): “Só aqui o sofrimento é sofrimento. Não como se aqueles que aqui sofrem devam ascender a outro lugar em função desse sofrimento, mas no sentido de que aquilo que neste mundo se chama sofrimento, em outro mundo, inalterado e tão somente libertado do seu oposto, é êxtase.” 

E é este êxtase que se mistura aos sentimentos dos personagens — que parecem guardar um parentesco comum, uma fina linha que os liga, e os sustenta, torna-os a semelhança maior entre os dois livros.

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Voláteis é um thriller urbano característico: o protagonista é um desenhista ambicioso insatisfeito com o que tem, e os personagens que transitam ao seu redor são de diferentes classes sociais (há, porém, uma preocupação com a classe média), discutem a questão racial e parecem quase sempre fazer as escolhas erradas.

Scott parece não ter preocupações com o lugar do narrador: narra-se a partir de uma terceira pessoa flutuante, frenética, mas de fato tradicional. O foco narrativo acompanha, então, a inconstância das personalidades. Reformulando: se tomarmos o ponto inicial da criação literária como a escolha do narrador (como ensina Cristovão Tezza, no belíssimo “O espírito da prosa), Voláteis começa em suspenso.

A quantidade de diálogos também é bastante notável: muitas vezes, o narrador é quase desnecessário tamanha a agilidade (sem valoração aqui) do texto e das trocas entre personagens. A questão é se isso justifica (se de fato houver a necessidade de uma justificativa) o narrador inconstante.

Há uma vocação poética clara:

“O vapor do chuveiro toma o quarto, seu esfumaçado desarruma o branco do teto, afrouxando as pálpebras de Sabrina, até um flash asfixiado lhe cobrir os pensamentos e escurecer, ensejando entre as vozes embaralhadas do dia algo sobre as linhas da sua mão: um eco que se dilui no barulho do chuveiro, um fosso onde ela precipitará agradecida, no peso da quietude, na proteção fugaz do abandono”

O que não implica necessariamente um valor estético maior ou menor: a poesia pode ser caracterizada com a aproximação do narrador ao autor, portanto, a não necessidade da criação profunda de um narrador ficcional, fato que reforça o discutido acima.

Outro fato que chama atenção no livro são as descrições de roupas:

“Separa quatro dessas peças menos comuns, joga as demais contra a cabeceira. Estende a saia evasê (surpreende-se com a tonalidade laranja do tecido feltrado sobre o branco do lençol), faz o mesmo com a calça de lã cordada, com a blusa amarela de algodão crepom e o corpete vermelho de fibra sintética”

Essa é um exemplo, há outras situações semelhantes. É a tentativa simbólica (ou alegórica) do narrador de nos colocar em contato com aquele mundo que ao mesmo tempo que é tão cruel parece, para o leitor com mais condições, tão irreal.

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O narrador de Voláteis é o mesmo da maior parte dos contos de Ainda orangotangos: o mesmo narrador flutuante, ágil (sem valoração), de frases curtas e que não tem medo de nada, talvez porque não haja tempo para se ter medo, ou não se saiba ter medo: não sei. O que se percebe, novamente, são características semelhantes de narrativa, mas parece evidente que os contos de Ainda orangotangos sobressaem ao  romance Voláteis.

Isso porque a mensagem, antes difusa longamente num romance de duzentas páginas, aqui se concentra em 22 relatos curtos, que raramente ultrapassam as duas páginas, e, na edição da Bertrand Brasil (“revista”), dividem espaço com um prefácio elogioso de José Castello (além das recomendações de Marçal Aquino, Luiz Antonio de Assis Brasil, Charles Kiefer e orelha de Daniel Galera... o que só mostra que o background de Scott é sólido). Essa concentração é positiva para o efeito que o autor (narrador) busca.

O efeito do conto por excelência se faz presente: as narrativas esticam a realidade até o limite da loucura, do fantástico e da irrealidade (oras). O conto que dá título ao livro começa com uma frase que é um recado: “Trinta e quatro de agosto”. O recado também está no conto “Pusilânimes no café-da-manhã”:

“Vou pelo corredor tateando, ainda não me acostumei com o apartamento. Bater de asas, pássaros? Acendo a luz, a sala está infestada de morcegos. Voam em círculo causando uma mancha negra assustadora. Recuo, entro apressado na primeira porta, a da biblioteca. Tranco a porta, tento me recompor, é enorme o pavor que sinto de ratos e morcegos [...]. Alguém bate à porta. Três vezes. Sinto a pressão nas costas. Dou mais uma volta na fechadura e me afasto (troquei os segredos das portas ontem, como pode?).”

O chão que se pisa quando se lê os contos de Scott é o mesmo ar pelo qual os morcegos dentro do apartamento andam: eles são reais, afinal, mas são tão reais que não podem existir, não é possível que existam. A única saída possível: a biblioteca, a literatura. É lá que enfim está a realidade.

Há, é verdade, narradores diferentes nos contos. Em “Insônia postiça” há, por exemplo, um hábil narrador em segunda pessoa, como num diálogo, entremeado por parênteses que são justificativas do interlocutor: o conto seria brilhante se o desfecho não fosse fechadíssimo, intransponível. A violência deste relato, por sua vez, é justificada: há um sentido para a estilização da violência, um sentimento. Coisa que não parece acontecer em “Gentalha”, por exemplo (em que novamente a “realidade” se rompe no limite): “Tranquei-a no banheiro, saí degolando um por um. Os maiores eu esfaqueava mesmo”.

Mas tudo isso pode não fazer sentido nenhum, porque, como diz Daniel Galera na orelha desta edição da Bertrand, “podemos sair de Ainda orangotangos sem entender tudo, mas saímos impressionados”.

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Voláteis
Paulo Scott
208 páginas
Preço sugerido: R$36,00

Ainda orangotangos
Paulo Scott
84 páginas
Preço sugerido: R$29,00

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Habitante irreal (Alfaguara, 2011), o livro mais recente de Paulo Scott, foi recebido como o livro do ano em 2011, apesar de ter recebido uma ou outra crítica negativa, se essa valoração (positiva x negativa) ainda fizer sentido (o que creio não fazer).

E Ainda orangotangos virou filme:



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Se você gostou desses, provavelmente também vai gostar de:

A arte de produzir efeito sem causa
Lourenço Mutarelli
208 páginas
Preço sugerido: R$44,50

O belo romance de Mutarelli tem umas pitadas de loucura, morte e tudo o mais que você vê por aí.

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