quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Aquela água toda, João Anzanello Carrascoza


O paulista João Anzanello Carrascoza (1962) é conhecido no cenário literário brasileiro por carregar uma grande tradição: a contística. Autor de diversos livros de contos, e uns poucos romances encaixados como infanto-juvenil (são mais de 20 no total), o publicitário é um prolífico contista que ainda leva outra bandeira: a de poeta das coisas simples.

Foi o que ele mesmo disse na FLIP 2012, na mesa em que participou, ao lado de Zuenir Ventura, Dulce Maria Cardoso e João Cesar de Castro Rocha. “Quero buscar a poética dos dias que não são FLIP”, disse naquela ocasião. Disse Carrascoza, outro dia: “Drummond falava que há reservas de poesia no mundo: por que não buscamos isso com mais frequência?”.

Num escritor tão prolífico, é de se esperar alguma irregularidade: no meio de contos de menor impacto (mas sempre com uma habilidade narrativa muito própria, uma voz fortíssima), há algumas pérolas, brilhantes. É o que acontece com o recente Aquela água toda (2012), publicado pela Cosac Naify num projeto gráfico ousado, no qual os contos são ilustrados por Leya Mira Brander, e as ilustrações num papel vegetal, o mesmo que reveste o livro.

Os onze contos do livro são pequenos recortes de vidas tradicionais: o ponto de vista familiar é sempre conservador, sempre paternalista. As famílias, sempre muito normais, com pequenos ódios e grandes amores; as percepções, infinitas e momentâneas, de embates que ocorrem com todos, todos os dias. Isso é marcado muitas vezes no início dos contos:

“Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão” (p. 33)
“Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O casal não iria [...]” (p. 37)
“Aconteceu que o pai, à mesa de jantar, disse de repente: [...]” (p. 51)
“Havia um homem. Sua mulher, as meninas” (p. 86)

Há, na maioria dos contos, uma busca incessante pela “inteireza” (palavra que aparece com frequência), a inteireza de qualquer coisa, da vida, da família, do amor: uma busca que já começa, no mínimo, incerta. Incerta porque há a necessidade de se escrever um conto sobre isso.

João A. Carrascoza também é redator
publicitário e professor universitário
de propaganda (Foto Divulgação
Cosac Naify)
Aqui há outra dúvida sobre os contos de Carrascoza, de maneira geral: onde está a necessidade de escrever certas coisas? Essa necessidade existe? Livros muito fortes passam a seguinte impressão: a de que precisam ser escritos. Passar a impressão de uma falta de necessidade parece um indício de fraqueza: impressões. Ouvindo uma longa entrevista de Paulo Leminski (gravada em 1982), percebe-se a certeza nas palavras dele: a poesia não tem porquê. Mas e a prosa, é tão certa nessa não-necessidade? Duvido muito.

Por exemplo, o conto que dá título ao livro. Em quatro páginas, o narrador (que acompanha mais de perto o menino da Família) descreve o encontro do menino com o mar e depois o reencontro com a Família que o esquece no ônibus: tudo num ambiente carregadíssimo de emoções em que a imagem “aquela água toda” aparece repetidamente.

Outro exemplo, o conto “Cristina”, em que o narrador, agora em primeira pessoa, é o menino, e vive uma paixão que, se você é de classe média e urbano (como eu sou), já deve ter vivido: a primeira ida ao cinema acompanhado, as dúvidas de pegar na mão ou não pegar, e o beijo no rosto na despedida: “O meu corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim”. Lugar-comum?

Este o pior de todos: “Grandes feitos”, que parece ser um dos preferidos do autor, se não o preferido (deste livro). Foi a leitura que ele fez na FLIP, em julho. A voz do narrador é inconfundível, isso não se pode negar. Mas o conto é, em uma palavra, desnecessário. Um derramamento de imagens piegas sobre uma família tradicional (Pai, Mãe, Filho): “Vestiram-se em seguida, sentindo a pele fresca como a manhã que continuava a vazar pela janela adentro, e que nem dava mostras de que envelhecia - era preciso cerrar bem os olhos para captar seu avanço, lento”.

O que estou tentando dizer é que Carrascoza levou a ideia de pegar a poesia do cotidiano a um limite muito tênue entre a poesia de coisas simples (que ele quer fazer) e o retrato piegas de rotinas desinteressantes (o efeito atingido por este livro). É arriscado demais.

Agora, ele acerta justamente quando recua um pouco deste limite e escreve relatos que, embora abordem temas do cotidiano, não são tão corriqueiros quanto uma ida ao cinema. “Recolhimento” e “Mundo justo” são as duas pérolas emocionantes do livro. Nesses dois contos, o autor utiliza a sua voz inconfundível e a habilidade narrativa que carrega para construir duas histórias poderosas.

Apenas uma pequena prévia para o leitor: em Recolhimento, o narrador em terceira pessoa narra a partir de um suposto funcionário público que recolhe animais de estimação mortos; em Mundo justo, em primeira pessoa, o narrador narra suas memórias de uma época da infância na qual jogou basquete.

Como falei, as famílias de Carrascoza, embora sempre tradicionais, carregam juntas uma busca pela “inteireza”, fato que pode ser entendido como a fuga da morte: há constantemente o medo da morte, o temor de que algo — quase sempre em relação à Família — ainda esteja por fazer, e que este algo ainda fique por fazer quando a hora da morte chegar. Equilibrar os personagens na linha que separa a razão da loucura nesse ponto, eis o desafio lançado por esse narrador.

Outra coisa, para não ser injusto. Carrascoza prega aquela ideia de poética das coisas simples: é a sua proposta, o seu habitat como ficcionista. A pergunta certa, então, é a seguinte: ele se apega a esta ideia (e a cumpre) com Aquela água toda? Sem dúvida. Analisar o autor de fora desse prisma (como eu fiz aqui) pode ser apenas um artifício crítico desnecessário.

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Aquela água toda
João Anzanello Carrascoza
Ilustrações Leya Mira Brander
96 páginas, 11 ilustrações
Preço sugerido: R$39,90

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
68 contos de Raymond Carver
Raymond Carver
Tradução: Rubens Figueiredo
712 páginas
Preço sugerido: R$54,00

Os contos de Carver também passam pelo tema familiar. Este livro é uma obra-prima.

2 comentários:

  1. Oi, Guilherme! Como eh curioso que tenhamos tido percepçoes tao diferentes sobre o livro. Embora eu prefira Dias Raros dele, achei Aquela Agua emocionante e nem um pouco piegas. Pelo contrario, a prosa do Joao eh elegante. Se de repente quiser comparar as resenhas, pra fazermos aquele exercicio da oficina com o Joao, pus aqui os comentarios: http://asmelhorespartes.blogspot.com.br/2012/10/aquela-agua-toda-joao-anzanello.html
    Mas concordamos num ponto: ousadissimo mesmo o projeto editorial da Cosac; eh praticamente uma edicao pra colecionador.
    Um abraco!
    Mayra.

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    1. Oi, Mayra!

      Acredito que esse livro não seja o melhor trabalho dele. Mas creio que é uma questão de gosto e de forma: como falei na resenha, apesar da voz muito característica (ponto pra ele; talvez não seja necessário mais nada) não me agradou a forma, que achei conservadora demais.

      Mas, é claro, pode ser apenas uma impressão incorreta.

      Obrigado, pela visita e pelo comentário :)

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