sábado, 1 de dezembro de 2012

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, David Foster Wallace

Desvincular a experiência pós-moderna da narrativa de David Foster Wallace (em algum estágio da sua obra, pelo menos) parece impossível. Ler alguns dos contos de Brief interviews with hideous men (lançado no Brasil pela Companhia das Letras; me refiro ao original neste texto porque só tive acesso a ele) é missão de especialista: Datum centurio por exemplo, é praticamente impenetrável.

Mas, após a leitura de um artigo do professor Caetano Galindo¹ (especialista na obra de DFW), podemos dizer que Brief interviews... é um momento de transição na obra do escritor americano. Uma transição da experiência puramente pós-moderna de “narratividade” (que redundou nas suas produções iniciais) e a fase final do trabalho de Wallace, que remete, segundo Galindo, a uma negação de um sistema irônico inerente à cultura norteamericana no final do século XX.

Esse sistema é para Wallace (de acordo com Galindo) uma postura ética que limita as possibilidades da escrita de ficção assim como as suas próprias contestações. Simplificando, é uma luta contra esse conformismo, contra essa aceitação passiva de fatores culturais que vai, enfim, “mover o futuro projeto ficcional de Wallace”.

No artigo, Galindo reúne e faz uma reflexão sobre as próprias reflexões de Wallace em um ensaio entitulado E unibus pluram, que por alguma razão ficou fora de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Companhia das Letras, 2012, trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari). Naquele ensaio, Wallace fala da influência da TV no imaginário cultural norteamericano, especialmente do fator irônico autoconsciente que a TV impõe, fator também exercitado pela ficção escrita. Segundo Galindo,

“E o que David Foster Wallace parece ter vontade de "reabilitar" é precisamente uma literatura triste, emocional, sincera em sua relação ficcional com o leitor. Evitando os cutucões do cotovelo do ironista e as artimanhas dos narradores indignos de confiança, especialmente dedicados a tentar passar a perna nesse leitor. Urn leitor que tem como principal finalidade se  juntar ao sorriso acre do autor que de tudo descrê e que apenas reafirma esse fato.”

(Ilustração Brian Taylor,
Los Angeles Times
)
Em Brief interviews... essa “vontade” se faz bem clara em alguns contos (apesar do contínuo interesse pela estrutura em si da narrativa, característica tipicamente pós-moderna): o fato de DFW investir pesado em descrições às vezes intermináveis, e em notas de rodapé enormes, parece ter o intuito de justamente aparar qualquer ponta de ironia que tenha escapado ao texto. No mínimo, aquela ironia autoconsciente, propositada. Um bom exemplo é o célebre “The depressed person”:

“The word ‘pathetic’, the therapist candidly shared, often felt to her like a defense-mechanism the depressed person used to protect herself against a listener’s possible negative judgements by making it clear that the depressed person was already judging herself far more severely than any listener could possibly have the heart to. The therapist was careful to point out that she was not judging or critiquing or rejecting the depressed person’s use of ‘pathetic’ but was merely trying to openly and honestly share the feelings which its use brought up for her in the context of their relantionship.”

Esse tipo de descrição de situações e sentimentos e trocas de experiências é marca fundamental da prosa de Wallace nesses dois livros em análise aqui. Na não-ficção, essa investigação parece levar alguma vantagem simplesmente pelo fato de ser, em alguma medida, mais engraçada, mais envolvente (sem nenhum juízo de valor aqui).

¹GALINDO, C.. Um tipo americano de tristeza: o próximo romance de David Foster Wallace e os próximos romances americanos DOI: 10.5007/2176-8552(0.7.2008)(125-138). outra travessia, UFSC , 7, 2009. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/11984>. Acesso em: 01 Dez. 2012.

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David Foster Wallace
(Foto: Flavorwire)
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo é a primeira coletânea de não-ficção de David Foster Wallace lançada no Brasil, e o “Ensaios” estampado na capa é mais um facilitador editorial do que um indicador correto (fato corrigido pelo tradutor no prefácio). Pelo menos três dos seis textos totais são claramente reportagens: sim, com esse estilo e essa proposta estética muito pessoais, e com elementos que extravazam o jornalismo, mas ainda reportagens (me refiro, é claro, a Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer e Pense na lagosta).

Um dos outros três está num espaço entre a reportagem e a pura reflexão (Federer como experiência religiosa, que, justamente por causa daquele estilo de descrições praticamente obsessivo, pode ser uma experiência realmente traumática para quem não tem um mínimo afeto pelo tênis como esporte). Uma palestra emocionante sobre o humor em Kafka e um discurso de paraninfo (que, aparente e superficialmente, esbarra num discurso de auto-ajuda com alto grau de ambição estética) completam a coleção.

No prefácio de Daniel Galera, ele explica por que E unibus pluram e outros ensaios importantes ficaram de fora: pela proposta editorial de trazer textos introdutórios da não-ficção de Wallace. Mas o ponto principal desse texto do Galera, com o qual eu concordo integralmente, é que a não-ficção de Wallace é mais acessível do que os seus contos, por exemplo, de Brief interviews... Mas não se engane: a mesma verborragia, o sarcasmo contumaz e as notas de rodapé enormes, fatores que entre outros caracterizam a voz narrativa de DFW estão presentes (e muito).

“Aqui está em jogo, acredito, a sutil vergonha generalizada que acompanha a autoindulgência, a necessidade de explicar para quem quiser ouvir por que a autoindulgência na verdade não é autoindulgência. Tipo: nunca vou receber uma massagem apenas para receber uma massagem, vou porque meu velho problema nas costas causado por uma lesão esportiva está me matando e mais ou menos me forçando a receber uma massagem; ou tipo: eu nunca apenas “quero” um cigarro, eu sempre “preciso” de um cigarro.”

Fatores, exatamente, que fazem a leitura da não-ficção de Wallace ser uma leitura memorável.

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Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo
David Foster Wallace
Trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari
312 páginas
Preço sugerido: R$44,50

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O artigo de Galindo continua no sentido de relacionar a obra de David Foster Wallace com a de outros ficcionistas norteamericanos (como Jonathan Franzen e Thomas Pynchon), e termina numa bela conclusão sobre a própria missão de Wallace nesse contexto. Vale a pena a leitura.

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Por coincidência, o escritor André de Leones publicou uma resenha da coletânea de ensaios hoje, no Estadão. Sérgio Rodrigues também escreveu sobre ela.

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Como ficar sozinho
Jonathan Franzen
Trad.: Oscar Pillagalo
328 páginas
Preço sugerido: R$46,00

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