domingo, 28 de abril de 2013

É isto um homem?, Primo Levi

“Desse modo brutal, oprimidos até o fundo, viveram muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória.
A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim”.
Assim começa um dos capítulos de É isto um homem?, primeiro livro do químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987), judeu italiano sequestrado pelo fascismo e deportado para o campo de extermínio de Auschwitz em 1944. Lá, ele passou 11 meses até a ocupação da região pelo exército russo, em fevereiro de 1945. No campo, Levi foi trabalhador comum por muitos meses, mas em seguida foi levado a trabalhar no laboratório químico. Antes de entrar para um grupo de resistência italiano e ser capturado, ele tinha concluído a formação superior em química.

Levi foi capturado com 24 anos. Saiu do campo com 25, publicou o livro com 27, em 1947. Não deixa de ser incrível perceber a maturidade literária de seu relato. Diz: “Ele não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana”. Ele explica, no prefácio, que o livro foi escrito para satisfazer a “necessidade elementar” de tornar “os outros” parte do processo daquela experiência. E acrescenta, sombrio: “Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação”.

Atendendo àquela necessidade, Levi constrói um livro de memórias fragmentado, organizado de maneira a refletir, nas palavras dele, a dimensão finita de toda condição humana. Ou seja, até a infelicidade e a condição miserável em que os judeus no campo ocupavam eram finitas: limitadas pela certeza da morte. Foi isso que, aparentemente, o fez sobreviver no campo (junto com a experiência no laboratório): Levi, por outro lado, costuma atribuir sua sobrevivência à sorte.

No livro, estão presentes descrições sobre o dia-a-dia no campo, sobre a crueldade dos alemães e dos prisioneiros não-judeus em relação aos judeus, sobre a economia que se organizou etc. Levi discorre, por exemplo, sobre a verdadeira tortura que era dividir uma cama com um completo desconhecido, em que cada um ficava com a face próxima aos pés do outro, torcendo para que o companheiro não tivesse sido escalado para limpar as latrinas na noite anterior.

Primo Levi
(Divulgação Companhia
das Letras)
Na famosa entrevista à Paris Review, Levi diz não sentir ódio (a entrevista é de 1985, dois anos antes de Levi morrer em circunstâncias obscuras). Mas ressalta: “[não sentir ódio] não é uma virtude; é um defeito”. E conclui: “Isso não quer dizer que eu esteja preparado para perdoar os alemães: não estou”.

Um ano depois, em 1986, Philip Roth entrevistou Levi, que com 67 anos, ainda demonstrava, para Roth, um vigor intelectual e físico muito grandes. Disse Levi, naquela ocasião (do livo Entre nós, de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras):
“No campo de concentração, vivi do modo mais racional que me era possível, e escrevi É isto um homem? me esforçando para explicar aos outros, e a mim mesmo, os eventos em que eu estivera envolvido, mas sem nenhuma intenção literária clara. Meu modelo (ou, se você preferir, meu estilo) era o do “relatório semanal” que se faz nas fábricas: ele deve ser preciso, conciso e utilizar uma linguagem compreensível para todos da hierarquia industrial”.

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É isto um homem?
Primo Levi
Tradução: Luigi Del Re
Rocco (1988)
176 páginas
Esgotado

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No seu livro Diário da queda, Michel Laub faz com que É isto um homem? ocupe um lugar importante na narrativa. O avô do narrador de Diário da queda é também um sobrevivente de Auschwitz, daí o paralelo traçado entre as duas obras. Diz o narrador de Laub, na metade do livro:
“Falar hoje sobre a mãe de João e o meu avô é apelar para as referências que incorporei ao longo dos anos, os filmes, as fotografias, os documentos, a primeira vez que li É isto um homem? e tive a impressão de que não havia mais nada a dizer a respeito. Não sei quantos dos que escreveram a respeito leram o livro, mas duvido que em qualquer desses textos existia algo que não tenha sido mostrado por Primo Levi. Adorno escreveu que não há mais poesia depois de Auschwitz, Yehuda Amichai escreveu que não há mais teologia depois de Auschwitz, Hannah Arendt escreveu que Auschwitz revelou a existência de uma forma específica de mal, e há os livros de Bruno Bettelheim, Victor Klemperer, Viktor Frankl, Paul Celan, Aharon Appelfeld, Ruth Klüger, Anne Frank, Elie Wiesel, Imre Kertész, Art Spiegelman e tantos e tantos outros, mas de alguma forma eles não poderiam ir além do que Primo Levi diz sobre os companheiros de alojamento, os que estavam na mesma fila, os que dividiram a mesma caneca, os que fizeram a caminhada rumo à noite escura de 1945 onde mais de vinte mil pessoas sumiram sem deixar traço um dia antes da libertação do campo”.

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Capítulo inicial de É isto um homem?:
“Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalho no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.”

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Diário da queda
Michel Laub
Companhia das Letras (2011)
152 páginas
Preço sugerido: R$35,00

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Marcio Renato dos Santos: "Todos falam, ninguém se entende. É o caos."

O nome impronunciável do segundo livro de contos de Marcio Renato dos Santos (1974), jornalista e escritor curitibano, é uma resenha em si mesmo: Golegolegolegolegah!.

Segundo Marcio Renato, autor de Minda-au (contos, lançado pela Record em 2010), o título impronunciável faz alusão à incomunicabilidade. “Estamos no século 21 e, apesar dos equipamentos, do avanço e da disponibilidade dos recursos tecnológicos, quase não conseguimos nos comunicar. Todos falam, ninguém se entende. É o caos. É a incomunicabilidade. É isso que está no livro”, comenta.

Num ótimo projeto gráfico da Travessa dos Editores, com ilustrações de Marciel Conrado, Golegolegolegolegah!, lançado mês passado em Curitiba, tem seis contos, sempre narrados em primeira pessoa. Na entrevista a seguir, Marcio Renato dos Santos, que também é mestre em Estudos Literários pela UFPR e curador do projeto Tulipas Negras Editora, fala sobre o novo lançamento e tenta, enfim, comunicar-se.

Biblioteca Vertical: No seu primeiro livro, Curitiba parecia ser um personagem principal, muitas vezes a cidade era trazida para o centro do conto. Em “Gole...” você diz: “Posso estar em Maringá, Florianópolis, Caxias do Sul ou Campinas. Que diferença faz?”. O que mudou? Curitiba representa alguma coisa na sua criação artística?

Marcio Renato dos Santos: Houve esforço, não da minha parte, mas de algumas pessoas para dar a entender que Minda-Au, meu primeiro livro, publicado em 2010 pela Record, seria uma obra autobiográfica. Curioso, não é mesmo?  Ficção, que é quase indefinível, mistura memória, delírio, sons, música, sonho, linguagem e algo que não se define. 

Autobiografia? Como? 

Nos sete contos de Minda-Au, havia sim referência a ruas, praças e espaços públicos de Curitiba. Disseram que Curitiba seria cenário e até personagem de Minda-Au. Considero a opinião válida.

No entanto, em Minda-Au os narradores fazem referências a outras Curitiba, as Curitibas literárias, inventadas por Newton Sampaio, Dalton Trevisan, Jamil Snege, Fábio Campana, Roberto Gomes, Cristovão Tezza, José Carlos Fernandes, entre outros autores. Há conversa com as Curitibas da ficção. 

Já em Golegolegolegolegah!, não há nenhuma referência geográfica à capital do Paraná. Golegolegolegolegah! é um livro de circunstância, sobre a incomunicabilidade.  
Respondi? 

Acho que não. 

Curitiba representa, para mim, tudo. Até na criação artística. É a cidade onde nasci. O local onde moro e nasceu o meu filho Vitor. Trabalho, caminho e atravesso madrugadas, manhãs, tardes e noites em Curitiba. 

Mais do que tudo, Curitiba é uma cidade na qual não existe, nem em sonho, o que chamam de autofagia. Quem fala de autofagia em Curitiba desconhece o ser humano e o mundo. Quem fala de autofagia nunca esteve em Curitiba. 

Biblioteca Vertical: Todos os contos do livro são narrados em primeira pessoa. Isso é uma desconfiança, uma tática, um artíficio ou uma coincidência?

Marcio Renato e a pimenteira
(Foto: Daniel Snege)
Marcio Renato dos Santos: Um livro de contos, para mim, e já publiquei dois, é – mais do que tudo – um conjunto de textos que conversam entre si. O Gudryan Neufert, um amigo que é jornalista e mora em São Paulo, leu Golegolegolegolegah! e escreveu o seguinte: “O livro trata da incomunicabilidade moderna. A escrita em primeira pessoa traz as angústias silenciosas do eu. São seis contos que podem ser lidos aleatoriamente mas que também não escondem suas correlações temáticas”.

Perceba: é um outro olhar, e não o meu. O Gudryan afirma que os contos escritos em primeira pessoa não escondem suas correlações temáticas. O Gudryan leu, de fato, Golegolegolegolegah!.

Escrevi esses contos durante 2011. Em outubro daquele ano, reli e reescrevi os textos, e me dei conta de que havia uma conexão entre eles: todos tratam da incomunicabilidade. Os personagens estão acossados, no limite. Em dezembro de 2011, o Fábio Campana me telefonou e perguntou se eu tinha um livro para ele publicar pela Travessa dos Editores. Disse que sim, mas gostaria de publicar um livro com um nome impronunciável, Golegolegolegolegah!, para fazer alusão à incomunicabilidade. O Campana gostou da ideia e o livro de fato foi publicado pela Travessa dos Editores. 

Estamos no século 21 e, apesar dos equipamentos, do avanço e da disponibilidade dos recursos tecnológicos, quase não conseguimos nos comunicar. Todos falam, ninguém se entende. É o caos. É a incomunicabilidade. É isso que está no livro.

Posso fazer uma sugestão. Grave uma conversa. Qualquer uma. Em qualquer dia. Depois, transcreva a conversa. E conte quantas vezes as pessoas falam eu. Todos falam eu, eu, eu, eu, eu, eu, muitas, diversas vezes. O tempo todo.

Em um contexto desses, optei por narradores em primeira pessoa. 

Mas não vou ficar aqui, eu, eu, eu, apenas eu falando do Golegolegolegolegah!.

O poeta Sergio Napp vive em Porto Alegre: ele recebeu o livro e me a seguinte mensagem: “Acabo de ler o teu livro e, como de hábito, o que me surpreende é a linguagem. Teus contos são de circunstâncias e quase prescindem de personagens. Os personagens servem para que o conto se estruture em uma situação e não para serem o centro da história. Isto me agrada muito. É um tanto novo. Por outro lado, teus contos não fecham, fica um sabor de ‘e daí?’. Isto me agrada mais. Fazer o leitor pensar. O que une os teus contos é o movimento externo, avião, automóvel, o ônibus, caminhar, etc. Ao mesmo tempo, na maioria há um dinheiro que surge de repente e muda a vida. Isto dá uma unidade ao livro e, lá pelas tantas, pode-se pensar que sempre temos o mesmo personagem em tempos vários. O melhor dos contos? Vamos ver:’ Nevoeiro’ e ‘Cento e noventa’. Pra finalizar: o invólucro: um dos livros mais bonitos que eu vi nos últimos tempos. Dá um prazer enorme folheá-lo. Acho que vou relê-lo.”

Que tal a opinião do Napp?

Outro leitor atento é o Eleotério Burrego, que leu Golegolegolegolegah! e escreveu o seguinte: “Você conseguiu traduzir neste livro parte da angústia nos assalta dia a dia frente a tecnologia que invadiu nosso contato diário. Pulverizando as relações em coisas frívolas, dispersivas. Ótimo livro, muitas pessoas se identificarão nos vários contos bem escritos. Magnífico”

Creio que os olhares do Napp, do Eleotério e do Gudryan ajudam a responder. Ou não?

Ah, faltou afirmar: pode existir coincidência na vida, mas nas páginas, linhas e entrelinhas de Golegolegolegolegah! não há coincidência. 

Biblioteca Vertical: Tem uma passagem no conto “Cento e noventa” em que o narrador-personagem faz uma reflexão sobre dois artistas dos quais ele diz não gostar:

“É que li na capa do caderno de cultura uma matéria, exagerada, sobre um personagem que conheço faz tempo. Ele é músico, ou melhor, se considera cantor e compositor, mas eu não tenho a mesma opinião sobre o assunto. [...]
E esse outro Fulano, o que se acha escritor? Não, não pode ser. [...] Só pode ser pegadinha. É real? No twitter só falam dele. Está aí. É a unanimidade do momento.
Sem dúvida, mais um equívoco”.

Você também é jornalista e crítico de cultura, então diga: com que frequência o Marcio Renato dos Santos se vê com os mesmos pensamentos desse personagem (nesse trecho)? Há muitos “embustes” por aí?

Marcio Renato dos Santos: O personagem de “Cento e noventa” está morto. Desde a primeira palavra, desde a primeira linha do conto. Mas ele não sabe, pelo menos no início, nem desconfia de sua condição, situação. É um sujeito que desejou se tornar artista, mas entrou em outros enredos. Não se sabe se desistiu da arte ou se constatou que a criação artística não seria o seu caminho. No entanto, quando encontra conhecidos, do passado, que no presente narrativo são reconhecidos como artistas, ele surta. Eis um dos conflitos do personagem sem nome. 

As ideias do personagem do conto “Cento e noventa” representam uma mentalidade, não necessariamente a minha. 

Talvez até ao contrário. 

A ficção que escrevo não é autobiográfica. Eu não sou os personagens que invento. Não tenho nada, ou quase nada, a ver com os personagens de Golegolegolegolegah! Apesar da primeira pessoa. Aquele eu não sou eu.  O narrador de “Cento e noventa” dirige um carro: eu não sei dirigir. Sou pedestre.  Daí, você poderia comentar: Mas o narrador do conto “Zé Ruela” é um pedestre, não é? Mas aquele personagem só anda, e eu ando, mas também faço algumas outras atividades. 

Sobre a sua pergunta, não posso responder uma vez que não sou o personagem que, inclusive, está morto.

Biblioteca Vertical: Uma curiosidade: o que você leu, ou tem lido ultimamente, que valeu mesmo a pena?

Marcio Renato dos Santos: Tenho lido muitos textos de qualidade. Por exemplo, as crônicas, às vezes contos, que o Fábio Campana publica na Ideias são brilhantes, já leu? Ele é dono de uma das mais vozes literárias mais instigantes da contemporaneidade. Leio a crônica do Roberto Gomes a cada 15 dias na Gazeta do Povo. A crônica do José Carlos Fernandes toda sexta-feira na Gazeta do Povo. O texto do Rogério Pereira, sempre às segundas, no Vida Breve, uma ficção forte, única, com pegada. Os textos que o Luiz Rebinski Junior produz para o jornal Cândido, além do conto que ele escreveu chamado “Uma mulher com um W enorme”. Os perfis que Omar Godoy escreve todo mês para o jornal Cândido. Os textos do Felipe Kryminice na Ideias. Os posts do Arthur Tertuliano, e as resenhas que ele escreve para o Rascunho. A bossa do Renan Machado. Qualquer prosa do Guilherme Magalhães.

No que diz respeito a livros, estou fascinado com Os enamoramentos, de Javier Marías. Toda obra do Enrique Vila-Matas, mas daí é releitura. Todo dia leio um trecho de um livro do Vila-Matas. Também releio e recomendo Anedotas do destino, de K. Blixen, A árvore de Isaias, do Campana,  O conhecimento de Anatol Kraft, do Roberto Gomes, O coronel Chabert, do Balzac, O livro do medo, do Guido Viaro, Trato de silêncios, da Luci Collin, Sergio Y vai à America, de Alexandre Vidal Porto, Sexo, do André Sant’Anna e Pornopopéia, do Reinaldo Moraes. E também leio e releio o encarte do álbum Abraçaço, do Caetano Veloso.

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Golegolegolegolegah!
Marcio Renato dos Santos
Travessa dos Editores (2013)
80 páginas
Preço sugerido: R$30







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Trecho do conto "Cento e noventa":

"Mas, sabe, tive de abandonar a arte, sobretudo após me deparar com artistas expressivos.
Por quê?
Porque eu nunca, jamais seria um artista visceral. 
Não me conformo é com o fato de sujeitos sem talento, como eu não tinha e não tenho, não abandonarem a arte, como eu abandonei.
Mais do que isso até, o que me deixa perplexo, irritado e com vontade de gritar é que esses sujeitos seguiram carreiras, emplacaram obras e se consolidam como referências." (p. 71).