segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O processo, Franz Kafka

O réu que obedece

Quando um escritor consegue inscrever o seu nome, ou a sua obra, na própria linguagem, ou seja, transformar seu ponto de vista num adjetivo, é porque, sem dúvida, ele atingiu algo de grandioso. A palavra “kafkiano” faz lembrar, entre outras coisas, o ambiente opressivo, muitas vezes sem sentido aparente, e um problema sem solução: tudo isso está registrado, talvez como em nenhuma outra obra de Franz Kafka (1888-1924), em O processo (L&PM, 2010, tradução Marcelo Backes).

O processo foi revelado pelo célebre amigo e biógrafo de Kafka, Max Brod, que resgatou os manuscritos do livro ainda antes do falecimento do autor, em uma cidade próxima a Viena, por tuberculose, em 1924. Como Kafka não deixou instruções claras sobre a organização interna do livro, Brod orientou os capítulos: hoje, a organização original do “editor” é contestada, sendo que algumas edições europeias já trazem diferentes organizações baseadas na extensa herança crítica da obra do tcheco.

Exatamente por isso, o leitor não tem em mãos um livro completamente acabado. Por outro lado, O processo tem todos os elementos clássicos da literatura de Kafka, além das já citadas: o início arrebatador, a luta constante do personagem contra a sua própria situação perante as pessoas e o trabalho, as relações sociais de trabalho e o surrealismo próprio dos escritos do autor. Talvez a ausência mais importante, em relação ao trabalho mais antigo, seja a relação familiar: coisa que só aparece em um capítulo inacabado no apêndice das edições tradicionais (Max Brod optou por deixar alguns fragmentos de fora da seleção inicial).

O processo começa assim:
“Alguém devia ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua senhoria, que lhe trazia o café da manhã todos os dias bem cedo, por volta das oito horas, desta vez não aparecera. Isso jamais havia acontecido.”
A partir daí, como em A metamorfose, o personagem passa a ser praticamente consumido por sua condição: aqui, a condição de um réu de um processo importante, porém muito semelhante a diversos outros processos, que parecem um fim em si mesmo, ou seja, não há objeto, mérito, atos. Há apenas juízes, advogados, réus, o tribunal. O estranhamento ocorre quando o leitor descobre a chave que o autor deu ao personagem: não há um questionamento sobre “o quê” é o processo, ou qual seu objeto, mas sim em como resolvê-lo. Não tão passivamente, K. aceita essa determinação judicial, e passa o livro na tentativa de se defender perante o tribunal. Portanto, resumir a sinopse do livro em “a história do indivíduo que é processado sem saber por que” seria uma injustiça.

Melhor seria dizer que O processo descreve um ano na vida de Joseph K., que luta contra uma imposição judicial e contra o seu próprio ímpeto. Porém, é claro, não é só isso. Kafka coloca vários elementos na narrativa que causam uma profunda desconfiança no leitor, e a pergunta que passa pela cabeça durante a leitura é a seguinte: por que esse indivíduo não quer saber o que fez? Acontece que, como já dito, não é essa a questão chave do livro. A questão chave estaria mais próxima da resposta à pergunta: “o que ele vai ter que fazer para se livrar do processo, e em última instância, não cometer uma loucura?”.

Por exemplo: K. procura um advogado, colega de escola de um tio, e quando ambos (K. e o tio) vão visitá-lo, o advogado já está padecendo de um grave problema no coração, e também por ser oito da noite, já está na cama. E é aí que ele recebe as visitas de K. pelo resto do livro: no seu próprio quarto, de pijamas, deitado na cama.

Isso se torna problemático quando o leitor descobre uma das chaves para a leitura de O processo: quanto maior o esforço em fazer algo acontecer, mais prejudicial e agressivo o processo se torna. Não há saída possível, parece querer dizer Kafka. Não adianta tentar.

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Kafka, em um de seus diários, se referiu a uma de suas mulheres como “meu tribunal”. A relação de Josef K. com as mulheres e com a sexualidade é algo que renderia uma resenha além desta. Porém, podem-se citar algumas passagens que contribuem na interpretação desse personagem esquisito.

Quando percebe que a senhoria limpou todo o aposento dele, que estava bagunçado, em apenas uma tarde, K. pensa “mãos femininas conseguem fazer muita coisa em silêncio”. Quando vai visitar o local do tribunal e descobre que nele mora uma família, uma mulher o recebe e logo após dizer que é casada, elogia os olhos dele, e após uma conversa, diz o narrador:
“Ela acariciou a mão de K., levantou-se de um salto e correu para a janela. Involuntariamente, K. ainda tentou pegar a mão dela, mas agarrou apenas o vazio. A mulher de fato o seduzia, e ele não encontrava, apesar de refletir muito a respeito, nenhum motivo justificável para não ceder à sedução.”
Em outra ocasião, ao encontrar funcionários do tribunal sendo castigados dentro do próprio banco onde trabalha, K. vê o carrasco “metido numa espécie de roupa de couro escura, que deixava nu o pescoço até bem embaixo, no peito, e os braços por inteiro”. Qualquer semelhança com o sadomasoquismo moderno é pura coincidência.

O que essas cenas mostram é um sedutor involuntário: e aqui se pode construir um paralelo bastante visível entre a relação de K. com o processo e com a questão sexual. Há sempre uma estranheza, uma brutalidade sutil, um não entendimento, uma perversidade (erótica e não) mal explicada.

O escritor italiano Primo Levi disse em uma entrevista que concordava com a afirmação de Heinrich Böll sobre o caráter “law-abiding” (obediente à Lei) dos germânicos. Isso teria sido, por exemplo, um dos fatores que permitiu o Holocausto. Porém, o que importa aqui é que Josef K. (embora não haja evidências de que ele era alemão, ou tcheco, mas Kafka escrevia em alemão) parece ter o mesmo problema: ele obedece. Mesmo com uma personalidade imprevisível no início do livro, em que lapsos de raiva são frequentes, mesmo sem saber para onde seu processo está indo, ou porque ele está sob julgamento, ou que “ter um processo desses já significa tê-lo perdido”, K. obedece. É isso.

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O processo
Franz Kafka
Tradução: Marcelo Backes
L&PM (2006)
304 páginas
R$19,90

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Lição de Kafka
Modesto Carone
Companhia das Letras (2009)
144 páginas
R$31,50

Boa referência, inclusive para esta resenha.

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