segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Livro dos Novos

O que é motivo para uma antologia? Na verdade, qualquer um: sexo, faixa etária, assunto, estilo, pertencer ao grupo certo de amigos, ter sorte, ter editor ou agente influente, ou, como eu acredito que seja o caso, a geografia (embora o motivo seja, obviamente, também, a faixa etária). O Livro dos Novos (Travessa dos Editores, 2013, 136 p.), organizado pela escritora Adriana Sydor e lançado recentemente em Curitiba, reúne 16 autores de até 30 anos que nasceram ou vivem em Curitiba e Região. São apostas – poucos já tiveram textos publicados em outras ocasiões – referendadas por uma editora tradicional da cidade.

Embora eu continue acreditando que a geografia é o principal atributo da coletânea (e o título me desminta), o que mais se nota pela ausência, nos contos, é a própria geografia. Não que isso seja um problema em si, mas poucos dos contos da antologia delimitam uma geografia precisa. Não a mistificação do Brasil, nem de Curitiba, não. Por exemplo: “No ringue de Hemingway”, um dos melhores contos do livro, de Felipe Franco Munhoz, o início já situa tudo muito bem: “San Francisco de Paula, Cuba”. Conseguir estabelecer uma geografia para a literatura (que precisa ir além do “campo” x “cidade”), acredito, é um bom desafio que merece ser encarado com mais vigor.

Há opções estéticas diversas entre os contos, mas nem tantas: a maioria das histórias se contenta em narrar um fato passado e pronto. Mas várias, é claro, vão além: “Guarda-roupas”, de Arthur Tertuliano, opta por criar um imaginário vasto para, com elegância e desenvoltura, contar uma história de um transgênero. A carta de “Noite em Antônio Maria”, de Daniel Zanella, é comovente. “Acabou”, de Guylherme Custódio, consegue cumprir bem uma das lições de Ricardo Piglia nas Teses sobre o conto: contar as duas histórias numa só.

Outro fio que une, de maneira positiva, a maioria dos textos da antologia é o controle do narrador: a escolha da primeira pessoa, presente em 11 dos 16 textos, é a escolha mais óbvia, mais segura, e geralmente a mais acertada. Criar um foco narrativo na terceira pessoa é mais arriscado: assim como é arriscado usar muitos verbos no pretérito mais que perfeito (“acabara”). A não ser que o objetivo seja claramente escrever um texto situado em outro tempo, que não o séc. XXI, como acontece em “Híbrida Companhia”, de Walter Bach, o uso do pretérito mais que perfeito é, quase sempre, desnecessário, chato e ingênuo.

A variedade temática dos contos, por outro lado, é um fator positivo. “Hominho”, de Yuri Al’Hanati, é narrado em primeira pessoa por um fazendeiro que vê seu cavalo preferido esfaqueado por um parente deficiente mental; “Como fumaça”, de Rodrigo Araújo, é um libelo quase modernista em defesa do tabaco; “Da falta de existir”, de Melissa R. Pitta, usa a metalinguagem numa tentativa de abarcar a insignifância da literatura; “Era”, de Marco Antonio Santos, tem um dos melhores e mais simples inícios do livro: “Entre 1997 e 2002 fui um cantor famoso”; “Entre Guaco & Azeitonas”, de Celso Alves, cria um ambiente faroeste para uma história envolvente.

Senti falta de maior experimentação e liberdade narrativa, mas os textos são, quase todos, muito bem escritos. A iniciativa de uma coletânea dessa espécie é bastante elogiável: num mercado editorial burocrático, conseguir publicar pode ser, para muitos, uma conquista muito grande. Espero e acredito que não tenha sido, para ninguém, um experimento constrangedor.

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Livro dos Novos
Adriana Sydor (org.)
Travessa dos Editores (2013)
136 p.
R$30,00.

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Revista Granta, V. 9 - Os melhores jovens autores brasileiros
Vários autores
Alfaguara (2012)
288 p.
R$34,90

domingo, 28 de abril de 2013

É isto um homem?, Primo Levi

“Desse modo brutal, oprimidos até o fundo, viveram muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória.
A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim”.
Assim começa um dos capítulos de É isto um homem?, primeiro livro do químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987), judeu italiano sequestrado pelo fascismo e deportado para o campo de extermínio de Auschwitz em 1944. Lá, ele passou 11 meses até a ocupação da região pelo exército russo, em fevereiro de 1945. No campo, Levi foi trabalhador comum por muitos meses, mas em seguida foi levado a trabalhar no laboratório químico. Antes de entrar para um grupo de resistência italiano e ser capturado, ele tinha concluído a formação superior em química.

Levi foi capturado com 24 anos. Saiu do campo com 25, publicou o livro com 27, em 1947. Não deixa de ser incrível perceber a maturidade literária de seu relato. Diz: “Ele não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana”. Ele explica, no prefácio, que o livro foi escrito para satisfazer a “necessidade elementar” de tornar “os outros” parte do processo daquela experiência. E acrescenta, sombrio: “Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação”.

Atendendo àquela necessidade, Levi constrói um livro de memórias fragmentado, organizado de maneira a refletir, nas palavras dele, a dimensão finita de toda condição humana. Ou seja, até a infelicidade e a condição miserável em que os judeus no campo ocupavam eram finitas: limitadas pela certeza da morte. Foi isso que, aparentemente, o fez sobreviver no campo (junto com a experiência no laboratório): Levi, por outro lado, costuma atribuir sua sobrevivência à sorte.

No livro, estão presentes descrições sobre o dia-a-dia no campo, sobre a crueldade dos alemães e dos prisioneiros não-judeus em relação aos judeus, sobre a economia que se organizou etc. Levi discorre, por exemplo, sobre a verdadeira tortura que era dividir uma cama com um completo desconhecido, em que cada um ficava com a face próxima aos pés do outro, torcendo para que o companheiro não tivesse sido escalado para limpar as latrinas na noite anterior.

Primo Levi
(Divulgação Companhia
das Letras)
Na famosa entrevista à Paris Review, Levi diz não sentir ódio (a entrevista é de 1985, dois anos antes de Levi morrer em circunstâncias obscuras). Mas ressalta: “[não sentir ódio] não é uma virtude; é um defeito”. E conclui: “Isso não quer dizer que eu esteja preparado para perdoar os alemães: não estou”.

Um ano depois, em 1986, Philip Roth entrevistou Levi, que com 67 anos, ainda demonstrava, para Roth, um vigor intelectual e físico muito grandes. Disse Levi, naquela ocasião (do livo Entre nós, de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras):
“No campo de concentração, vivi do modo mais racional que me era possível, e escrevi É isto um homem? me esforçando para explicar aos outros, e a mim mesmo, os eventos em que eu estivera envolvido, mas sem nenhuma intenção literária clara. Meu modelo (ou, se você preferir, meu estilo) era o do “relatório semanal” que se faz nas fábricas: ele deve ser preciso, conciso e utilizar uma linguagem compreensível para todos da hierarquia industrial”.

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É isto um homem?
Primo Levi
Tradução: Luigi Del Re
Rocco (1988)
176 páginas
Esgotado

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No seu livro Diário da queda, Michel Laub faz com que É isto um homem? ocupe um lugar importante na narrativa. O avô do narrador de Diário da queda é também um sobrevivente de Auschwitz, daí o paralelo traçado entre as duas obras. Diz o narrador de Laub, na metade do livro:
“Falar hoje sobre a mãe de João e o meu avô é apelar para as referências que incorporei ao longo dos anos, os filmes, as fotografias, os documentos, a primeira vez que li É isto um homem? e tive a impressão de que não havia mais nada a dizer a respeito. Não sei quantos dos que escreveram a respeito leram o livro, mas duvido que em qualquer desses textos existia algo que não tenha sido mostrado por Primo Levi. Adorno escreveu que não há mais poesia depois de Auschwitz, Yehuda Amichai escreveu que não há mais teologia depois de Auschwitz, Hannah Arendt escreveu que Auschwitz revelou a existência de uma forma específica de mal, e há os livros de Bruno Bettelheim, Victor Klemperer, Viktor Frankl, Paul Celan, Aharon Appelfeld, Ruth Klüger, Anne Frank, Elie Wiesel, Imre Kertész, Art Spiegelman e tantos e tantos outros, mas de alguma forma eles não poderiam ir além do que Primo Levi diz sobre os companheiros de alojamento, os que estavam na mesma fila, os que dividiram a mesma caneca, os que fizeram a caminhada rumo à noite escura de 1945 onde mais de vinte mil pessoas sumiram sem deixar traço um dia antes da libertação do campo”.

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Capítulo inicial de É isto um homem?:
“Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalho no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.”

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Diário da queda
Michel Laub
Companhia das Letras (2011)
152 páginas
Preço sugerido: R$35,00

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Marcio Renato dos Santos: "Todos falam, ninguém se entende. É o caos."

O nome impronunciável do segundo livro de contos de Marcio Renato dos Santos (1974), jornalista e escritor curitibano, é uma resenha em si mesmo: Golegolegolegolegah!.

Segundo Marcio Renato, autor de Minda-au (contos, lançado pela Record em 2010), o título impronunciável faz alusão à incomunicabilidade. “Estamos no século 21 e, apesar dos equipamentos, do avanço e da disponibilidade dos recursos tecnológicos, quase não conseguimos nos comunicar. Todos falam, ninguém se entende. É o caos. É a incomunicabilidade. É isso que está no livro”, comenta.

Num ótimo projeto gráfico da Travessa dos Editores, com ilustrações de Marciel Conrado, Golegolegolegolegah!, lançado mês passado em Curitiba, tem seis contos, sempre narrados em primeira pessoa. Na entrevista a seguir, Marcio Renato dos Santos, que também é mestre em Estudos Literários pela UFPR e curador do projeto Tulipas Negras Editora, fala sobre o novo lançamento e tenta, enfim, comunicar-se.

Biblioteca Vertical: No seu primeiro livro, Curitiba parecia ser um personagem principal, muitas vezes a cidade era trazida para o centro do conto. Em “Gole...” você diz: “Posso estar em Maringá, Florianópolis, Caxias do Sul ou Campinas. Que diferença faz?”. O que mudou? Curitiba representa alguma coisa na sua criação artística?

Marcio Renato dos Santos: Houve esforço, não da minha parte, mas de algumas pessoas para dar a entender que Minda-Au, meu primeiro livro, publicado em 2010 pela Record, seria uma obra autobiográfica. Curioso, não é mesmo?  Ficção, que é quase indefinível, mistura memória, delírio, sons, música, sonho, linguagem e algo que não se define. 

Autobiografia? Como? 

Nos sete contos de Minda-Au, havia sim referência a ruas, praças e espaços públicos de Curitiba. Disseram que Curitiba seria cenário e até personagem de Minda-Au. Considero a opinião válida.

No entanto, em Minda-Au os narradores fazem referências a outras Curitiba, as Curitibas literárias, inventadas por Newton Sampaio, Dalton Trevisan, Jamil Snege, Fábio Campana, Roberto Gomes, Cristovão Tezza, José Carlos Fernandes, entre outros autores. Há conversa com as Curitibas da ficção. 

Já em Golegolegolegolegah!, não há nenhuma referência geográfica à capital do Paraná. Golegolegolegolegah! é um livro de circunstância, sobre a incomunicabilidade.  
Respondi? 

Acho que não. 

Curitiba representa, para mim, tudo. Até na criação artística. É a cidade onde nasci. O local onde moro e nasceu o meu filho Vitor. Trabalho, caminho e atravesso madrugadas, manhãs, tardes e noites em Curitiba. 

Mais do que tudo, Curitiba é uma cidade na qual não existe, nem em sonho, o que chamam de autofagia. Quem fala de autofagia em Curitiba desconhece o ser humano e o mundo. Quem fala de autofagia nunca esteve em Curitiba. 

Biblioteca Vertical: Todos os contos do livro são narrados em primeira pessoa. Isso é uma desconfiança, uma tática, um artíficio ou uma coincidência?

Marcio Renato e a pimenteira
(Foto: Daniel Snege)
Marcio Renato dos Santos: Um livro de contos, para mim, e já publiquei dois, é – mais do que tudo – um conjunto de textos que conversam entre si. O Gudryan Neufert, um amigo que é jornalista e mora em São Paulo, leu Golegolegolegolegah! e escreveu o seguinte: “O livro trata da incomunicabilidade moderna. A escrita em primeira pessoa traz as angústias silenciosas do eu. São seis contos que podem ser lidos aleatoriamente mas que também não escondem suas correlações temáticas”.

Perceba: é um outro olhar, e não o meu. O Gudryan afirma que os contos escritos em primeira pessoa não escondem suas correlações temáticas. O Gudryan leu, de fato, Golegolegolegolegah!.

Escrevi esses contos durante 2011. Em outubro daquele ano, reli e reescrevi os textos, e me dei conta de que havia uma conexão entre eles: todos tratam da incomunicabilidade. Os personagens estão acossados, no limite. Em dezembro de 2011, o Fábio Campana me telefonou e perguntou se eu tinha um livro para ele publicar pela Travessa dos Editores. Disse que sim, mas gostaria de publicar um livro com um nome impronunciável, Golegolegolegolegah!, para fazer alusão à incomunicabilidade. O Campana gostou da ideia e o livro de fato foi publicado pela Travessa dos Editores. 

Estamos no século 21 e, apesar dos equipamentos, do avanço e da disponibilidade dos recursos tecnológicos, quase não conseguimos nos comunicar. Todos falam, ninguém se entende. É o caos. É a incomunicabilidade. É isso que está no livro.

Posso fazer uma sugestão. Grave uma conversa. Qualquer uma. Em qualquer dia. Depois, transcreva a conversa. E conte quantas vezes as pessoas falam eu. Todos falam eu, eu, eu, eu, eu, eu, muitas, diversas vezes. O tempo todo.

Em um contexto desses, optei por narradores em primeira pessoa. 

Mas não vou ficar aqui, eu, eu, eu, apenas eu falando do Golegolegolegolegah!.

O poeta Sergio Napp vive em Porto Alegre: ele recebeu o livro e me a seguinte mensagem: “Acabo de ler o teu livro e, como de hábito, o que me surpreende é a linguagem. Teus contos são de circunstâncias e quase prescindem de personagens. Os personagens servem para que o conto se estruture em uma situação e não para serem o centro da história. Isto me agrada muito. É um tanto novo. Por outro lado, teus contos não fecham, fica um sabor de ‘e daí?’. Isto me agrada mais. Fazer o leitor pensar. O que une os teus contos é o movimento externo, avião, automóvel, o ônibus, caminhar, etc. Ao mesmo tempo, na maioria há um dinheiro que surge de repente e muda a vida. Isto dá uma unidade ao livro e, lá pelas tantas, pode-se pensar que sempre temos o mesmo personagem em tempos vários. O melhor dos contos? Vamos ver:’ Nevoeiro’ e ‘Cento e noventa’. Pra finalizar: o invólucro: um dos livros mais bonitos que eu vi nos últimos tempos. Dá um prazer enorme folheá-lo. Acho que vou relê-lo.”

Que tal a opinião do Napp?

Outro leitor atento é o Eleotério Burrego, que leu Golegolegolegolegah! e escreveu o seguinte: “Você conseguiu traduzir neste livro parte da angústia nos assalta dia a dia frente a tecnologia que invadiu nosso contato diário. Pulverizando as relações em coisas frívolas, dispersivas. Ótimo livro, muitas pessoas se identificarão nos vários contos bem escritos. Magnífico”

Creio que os olhares do Napp, do Eleotério e do Gudryan ajudam a responder. Ou não?

Ah, faltou afirmar: pode existir coincidência na vida, mas nas páginas, linhas e entrelinhas de Golegolegolegolegah! não há coincidência. 

Biblioteca Vertical: Tem uma passagem no conto “Cento e noventa” em que o narrador-personagem faz uma reflexão sobre dois artistas dos quais ele diz não gostar:

“É que li na capa do caderno de cultura uma matéria, exagerada, sobre um personagem que conheço faz tempo. Ele é músico, ou melhor, se considera cantor e compositor, mas eu não tenho a mesma opinião sobre o assunto. [...]
E esse outro Fulano, o que se acha escritor? Não, não pode ser. [...] Só pode ser pegadinha. É real? No twitter só falam dele. Está aí. É a unanimidade do momento.
Sem dúvida, mais um equívoco”.

Você também é jornalista e crítico de cultura, então diga: com que frequência o Marcio Renato dos Santos se vê com os mesmos pensamentos desse personagem (nesse trecho)? Há muitos “embustes” por aí?

Marcio Renato dos Santos: O personagem de “Cento e noventa” está morto. Desde a primeira palavra, desde a primeira linha do conto. Mas ele não sabe, pelo menos no início, nem desconfia de sua condição, situação. É um sujeito que desejou se tornar artista, mas entrou em outros enredos. Não se sabe se desistiu da arte ou se constatou que a criação artística não seria o seu caminho. No entanto, quando encontra conhecidos, do passado, que no presente narrativo são reconhecidos como artistas, ele surta. Eis um dos conflitos do personagem sem nome. 

As ideias do personagem do conto “Cento e noventa” representam uma mentalidade, não necessariamente a minha. 

Talvez até ao contrário. 

A ficção que escrevo não é autobiográfica. Eu não sou os personagens que invento. Não tenho nada, ou quase nada, a ver com os personagens de Golegolegolegolegah! Apesar da primeira pessoa. Aquele eu não sou eu.  O narrador de “Cento e noventa” dirige um carro: eu não sei dirigir. Sou pedestre.  Daí, você poderia comentar: Mas o narrador do conto “Zé Ruela” é um pedestre, não é? Mas aquele personagem só anda, e eu ando, mas também faço algumas outras atividades. 

Sobre a sua pergunta, não posso responder uma vez que não sou o personagem que, inclusive, está morto.

Biblioteca Vertical: Uma curiosidade: o que você leu, ou tem lido ultimamente, que valeu mesmo a pena?

Marcio Renato dos Santos: Tenho lido muitos textos de qualidade. Por exemplo, as crônicas, às vezes contos, que o Fábio Campana publica na Ideias são brilhantes, já leu? Ele é dono de uma das mais vozes literárias mais instigantes da contemporaneidade. Leio a crônica do Roberto Gomes a cada 15 dias na Gazeta do Povo. A crônica do José Carlos Fernandes toda sexta-feira na Gazeta do Povo. O texto do Rogério Pereira, sempre às segundas, no Vida Breve, uma ficção forte, única, com pegada. Os textos que o Luiz Rebinski Junior produz para o jornal Cândido, além do conto que ele escreveu chamado “Uma mulher com um W enorme”. Os perfis que Omar Godoy escreve todo mês para o jornal Cândido. Os textos do Felipe Kryminice na Ideias. Os posts do Arthur Tertuliano, e as resenhas que ele escreve para o Rascunho. A bossa do Renan Machado. Qualquer prosa do Guilherme Magalhães.

No que diz respeito a livros, estou fascinado com Os enamoramentos, de Javier Marías. Toda obra do Enrique Vila-Matas, mas daí é releitura. Todo dia leio um trecho de um livro do Vila-Matas. Também releio e recomendo Anedotas do destino, de K. Blixen, A árvore de Isaias, do Campana,  O conhecimento de Anatol Kraft, do Roberto Gomes, O coronel Chabert, do Balzac, O livro do medo, do Guido Viaro, Trato de silêncios, da Luci Collin, Sergio Y vai à America, de Alexandre Vidal Porto, Sexo, do André Sant’Anna e Pornopopéia, do Reinaldo Moraes. E também leio e releio o encarte do álbum Abraçaço, do Caetano Veloso.

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Golegolegolegolegah!
Marcio Renato dos Santos
Travessa dos Editores (2013)
80 páginas
Preço sugerido: R$30







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Trecho do conto "Cento e noventa":

"Mas, sabe, tive de abandonar a arte, sobretudo após me deparar com artistas expressivos.
Por quê?
Porque eu nunca, jamais seria um artista visceral. 
Não me conformo é com o fato de sujeitos sem talento, como eu não tinha e não tenho, não abandonarem a arte, como eu abandonei.
Mais do que isso até, o que me deixa perplexo, irritado e com vontade de gritar é que esses sujeitos seguiram carreiras, emplacaram obras e se consolidam como referências." (p. 71).

quarta-feira, 20 de março de 2013

Pastoral Americana, Philip Roth


Pastoral Americana é um livro incrível e grande. Livros grandes têm maior facilidade de serem incríveis, e os últimos livros grandes que li (Anna Kariênina, por exemplo) foram sempre incríveis. Mas nenhum deles me deixou tão triste ao terminá-lo quanto Pastoral Americana. Há cenas, neste livro, que fazem chorar, que fazem pensar, que fazem você querer parar de ler, colocá-lo de lado, e gritar Meu deus, por que ele (Roth) está fazendo isso, por quê, por quê?

Desse tanto. Pastoral me deixou com insônia.

No livro, o narrador é o já estabelecido Nathan Zuckerman, alter-ego de Roth, que, diferentemente dos romances publicados no Brasil na edição de Zuckerman acorrentado, não é o personagem principal, mas principalmente o narrador. Na primeira das três partes do livro, Zuckermann narra em primeira pessoa sua própria experiência com Seymour Levov, o Sueco, esse sim o personagem principal do livro.

A convivência entre os dois se dá na escola secundária, quando Sueco era, aos olhos de todos, um atleta excepcional, invejado, lindo, musculoso, ídolo secreto de Zuckerman, que por sua vez, era amigo de Jerry apenas por este ser irmão do Sueco (Jerry, mais tarde, é o máximo). Muitos anos depois, Sueco e Zuckerman se encontram novamente, duas vezes (com um intervalo grande de tempo entre os dois encontros). É a partir do segundo que Zuckerman escreve o que escreve, que resulta nas duas partes finais do Pastoral Americana (que junto com A marca humana e Casei com um comunista formam a Trilogia Americana).

E é aí que você vai morrer de desgosto. A história do cara bonitão, que herda a fábrica de luvas do pai, que se casa e vai morar em uma região rural de New Jersey e tem uma filha que se revolta contra a Guerra do Vietnã é emocionante, sofrida, espetacular, trágica, inesquecível.

A narração de Zuckerman (na tradução de Rubens Figueiredo), que mistura a terceira pessoa, reflexões, pensamentos e suposições do Sueco, faz o livro de 500 páginas voar. Os temas, sempre presentes na obra de Roth, são igualmente irresistíveis: conflitos familiares levados ao extremo, dificuldade com as mulheres, judaísmo, e, claro, a América.


Óbvio que ninguém vai julgar um livro cujo título é “Pastoral Americana” por ele ser, digamos, americanista. O próprio Rubens Figueiredo, num encontro aqui em Curitiba, propôs uma reflexão que muitas vezes passa batida por nós, leitores brasileiros.

Mas antes, quero trazer um conceito dos estudos de recepção, o “narratário”. Diz Vincent Jouve: “Simetricamente, o receptor é ao mesmo tempo o leitor real, cujos traços psicológicos, sociológicos e culturais podem variar infinitamente, e uma figura abstrata postulada pelo narrador pelo simples fato de que todo texto dirige-se necessariamente a alguém. Mediante o que diz e do modo como diz, um texto supõe sempre um tipo de leitor - 'um narratário' - relativamente definido. (...) Pelos temas que aborda e pela linguagem que usa, cada texto desenha no vazio um leitor específico. Assim, o narratário, da mesma forma que o narrador, só existe dentro da narrativa: é apenas a soma dos signos que o constroem.”

O “narratário” desse livro, então, é o leitor americano de Zuckermann. Esse pensamento nos leva para a reflexão de Rubens Figueiredo:

“Ao ler com atenção os livros deles [Susan Sontag e Paul Auster], você não encontra críticas a respeito da distribuição desigual de poder no mundo. O postulado desses autores pode ser entendido como ‘os Estados Unidos dominam e é bom que seja assim’. [...] Estou traduzindo um livro que, a cada dez páginas, o autor fala em povo americano, democracia americana, sociedade americana, os Estados Unidos. É impressionante. E nós lemos e não percebemos isso. Não percebemos porque o nosso pressuposto é que isso é normal. Mas isso não é normal”.

Não é normal, mas acontece (e nesse caso, duas vezes, porque o narratário e o leitor real são americanos). Tem um poeminha do Leminski (tá na moda!) que ilustra perfeitamente:

"podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano"

É isso! Parte do meu imaginário (parte significativa, infelizmente talvez) é moldada pela porra do cinema americano, e aí, quando um sujeito escreve um livro chamado Pastoral Americana eu sinto como se eu mesmo tivesse lembranças de verdade sobre o lugar e a identificação é inevitável. É incrível, mas é terrível ao mesmo tempo.

Diz Roth (Zuckermann):
“A ruptura do futuro americano previsto, que consistia simplesmente no desenrolar do consistente passado americano, no fato de cada geração se tornar mais esperta que a anterior - mais esperta por conhecer as inadequações e limitações das gerações precedentes -, [...] no desejo de ir até o limite na América apoiados nos nossos direitos, [...] de forma a levar a vida sem ter de pedir desculpas, como um igual entre iguais. 
E então a perda [...] - iniciando o Sueco no desajuste de uma América completamente distinta, a filha e a década fazendo picadinho da sua forma particular de pensamento utópico, a América da peste se infiltrando no castelo do Sueco e, ali, infectando todo mundo. A filha que o transporta para fora da sonhada pastoral americana [...].”

A Pastoral é o sonho americano, the american dream, the american way of life, the wellfare state, the motherfucking Thanksgiving, com seu “peru gigante que alimenta 250 milhões de almas atormentadas” (“É a pastoral americana por excelência, e dura vinte e quatro horas”). O sonho é viver dentro da Pastoral, ser consumido pela Pastoral, está tudo ali, ela nos alimenta, nos fornece o football, nos enriquece, por que alguém em sã consciência deveria mudá-la?!

Mas o Sueco é transportado para fora da Pastoral.
“E por que não deveria estar onde eu queria? Por que não deveria estar com quem eu queria? Não é esse o espírito desse país? Quero ficar onde quero ficar e não quero ficar onde não quero ficar. É isso o que siginifca ser americano... não é?”
O que se passa, nas 500 páginas do livro, é o processo extremamente doloroso do Sueco sendo levado para longe da Pastoral. Não pense em dívidas, dúvidas simples, reflexões de escritores em cafés, filosofia rasteira, acontecimentos lineares, nada disso.

Pense num escritor. Agora, pense em uma obra-prima.

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Pastoral Americana
Philip Roth
Tradução Rubens Figueiredo
480 páginas
Preço sugerido: R$69,00; ebook até sabe deus quando R$9,90

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Se você gosta de Philip Roth e habita a internet literária do Brasil, conheça e frequente o Livros Abertos, um dos poucos blogs brasileiros por aí que eu ainda não vi ninguém xingar (alô, Camila!).

Philip Roth completou 80 anos no dia 19. Espero que ele esteja com saúde e viva bem e mais quantos anos quiser.

Devido à data especial, a Internet recebeu ou relembrou muito conteúdo sobre Roth. Bom. Estou buscando o link para o documentário Philip Roth: Unmasked, da série American Masters da PBS (uma dessas megacompanhias que deformaram os nossos imaginários), mas ainda não achei. Se alguém achar, passa ae! Quando encontrar, colocarei aqui e no tuíter. 

Se você curte e-books, e é difícil achar esses livros físicos, corra que até o dia 21/03 (amanhã!) a Companhia das Letras tá com promoção para a Trilogia Americana. Pastoral me saiu pela bagatela de R$9,90.

Fica também uma entrevista bacana com o escritor, e tem até legendas em português. A entrevista foi cedida para o Estadão, repórter Lúcia Guimarães, em 2010:



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Mais um trecho do Pastoral porque é realmente bom:
"Persiste o fato de que entender direito as pessoas não é uma coisa própria da vida, nem um pouco. Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados. Talvez a melhor coisa fosse esquecer se estamos certos ou errados a respeito das pessoas e simplesmente ir vivendo do jeito que der. Mas se você é capaz de fazer isso... bem, boa sorte".
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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Anna Kariênina
Liev Tolstói
Tradução: Rubens Figueiredo
Cosac Naify (2005)
816 páginas
Preço sugerido: R$109,00

Outro livro enorme em que basicamente todo mundo se fode no mau sentido.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Um crime delicado, Sérgio Sant'Anna

Ler esse livro do escritor carioca Sérgio Sant’Anna (1941) me lembrou o tempo todo os escritos de Enrique Vila-Matas, o que é engraçado porque é difícil encontrar um ponto de encontro entre os dois fora dessa impressão literária. Talvez um deles seja a admiração que Vila-Matas manifesta por César Aira, tradutor de Sant’Anna na Argentina. Tudo é coincidência.

A questão é que Um crime delicado (1997, Companhia das Letras, vencedor do Jabuti de 98) é um romance, em formato de desabafo, escrito por um crítico de teatro, encenado como uma peça, trabalhado como uma crítica. 

Antonio Martins é um crítico de teatro que se envolve em um processo criminal após o seu envolvimento com Ines, uma mulher manca que causa nele uma profunda impressão. O seu desabafo, que é então a narrativa, é a sua versão dos fatos.

Ao colocar o narrador no papel do crítico, Sant’Anna utiliza uma fórmula, um vício ao contrário, e cria um romance em que o crítico, no lugar de avaliar, é avaliado.

E esse crítico é assim: ele usa um estilo envelhecido, elegante é verdade, mas na maior parte do tempo pomposo, como pomposa parece ser a sua própria vida.

“Sobre uma leve camisa social listrada, de mangas compridas, que arregacei um pouco, eu vestira um colete desabotoado. Uma peça que, no meu entender, antes de ser anacrônica, era intemporal, concedendo-me ao mesmo tempo um toque clássico e moderno, de elegância discreta e jovialidade, esta última reforçada pela calça jeans que eu usava como todo mundo”.

Que passagem primorosa de descrição de um personagem! Pouca coisa precisa ser dita: alguém que precisa loucamente de um grau de aprovação qualquer, que está numa breve crise de identidade, que precisa se afirmar como elegante porém jovial. Ora, não parece a crítica literária atual (lembrando que o romance é de 1997)?

Assistindo a uma participação do professor João Cezar de Castro Rocha num encontro do Itaú Cultural, em novembro passado, vemos o crítico defender com veemência a “secundidade” da própria crítica. Ou seja, a crítica tem que assumir o seu papel secundário para então renovar seu discurso e retomar seu papel relevante no sistema cultural.

Sérgio Sant'Anna
Divulgação Companhia
das Letras
Mas parece que a crítica (com honrosas exceções como a de João Cezar), assim como o narrador de Um crime delicado (Antônio Martins - o sobrenome de um dos maiores críticos literários do século XX não é, apesar de comum, coincidência), nada contra uma corrente invisível. O narrador do romance não escreve o seu relato para se desculpar, para pôr a prova algum erro, não: ele escreve na defensiva.

Há, igualmente, essa corrente invisível contra qual a crítica tem que nadar. Há um não entedimento da atividade crítica generalizado: acadêmicos acham jornalistas superficiais, jornalistas acham acadêmicos entediantes, e numa dessas a relevância vai por água abaixo. Claro que há exceções, e são elas que nadam contra a corrente, essa talvez real.

Sobre toda essa questão, o Vila-Matas tem um trecho bom do Ar de Dylan:

“[…] admirava talvez falsamente porque — tendo começado a publicar nos anos que a crítica literária podia decidir o destino de um livro — adquirira o costume de se dar bem com aqueles resenhadores que revelavam um perigoso ânimo depredador, pois não parecia recomendável cruzar os braços diante deles e ficar inteiramente à mercê de sua sede de mal ou de sua vontade de invocar sempre aquele escritor fantasma que para eles seria o escritor perfeito: um narrador que eles pareciam conhecer a fundo porque era eles mesmos […]”

De fato, Enrique, era eles mesmos.

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Um crime delicado
Sérgio Sant'Anna
136 páginas
Preço sugerido: R$34,00

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O livro foi adaptado para o cinema por Beto Brant. Veja o trailer:

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Ar de Dylan
Enrique Vila-Matas
Trad.: José Rubens Siqueira
320 páginas
Preço sugerido: R$59,00

sábado, 26 de janeiro de 2013

Retrato de um viciado quando jovem, Bill Clegg

*Nota: eu comprei esse livro no saldão da Fnac, a hardcover americana, da Little Brown, saiu por R$5,90, coisa assim. Foi essa edição que eu li, mas o livro foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2011, com tradução da Julia Romeu, sob o título Retrato de um viciado quando jovem. Os trechos, então e é claro, são da edição americana. Na contracapa ainda há elogios de, entre outros, Michael Cunningham e Irvine Welsh.

Os riscos de fazer literatura sobre drogas numa sociedade conservadora são grandes: por um lado, considerar o tema um tabu e não colocá-lo em discussão é pura hipocrisia; por outro, cair no politicamente correto, por exemplo, é fácil (lembre-se, estamos falando de literatura). Então, para o leitor, o primeiro livro do norte americano Bill Clegg, Portrai of an addict as a young man, é no mínimo um livro perigoso.

Perigoso porque o relato pode muito bem passar pelo pornográfico: um passeio na própria e crua desgraça em que o autor-narrador se envolveu: aqui a mesma pessoa, porque o livro é um livro de memórias.

Clegg era um alcóolatra com uma aparente propensão ao caráter transgressor das drogas. O vício ao crack veio numa escapada - Clegg, que até então tinha uma namorada fixa, também se descobre homossexual. Um dia, ele encontra um advogado conhecido e quarenta anos mais velho, que o convida para tomar um drink na sua casa, e oferece crack. 

“The taste is like medicine, or cleaning fluid, but also a little sweet, like limes. [...] A surge of new energy pounds through every inch of him, and there is a moment of perfect oblivion where he is aware of nothing and everything. [...] It is the warmest, most tender caress he has ever felt and then, as it recedes, the coldest hand. He misses the feeling even before it’s left him and not only does he want more, he needs it”.

Isso acontece pouco antes da metade do livro. Antes disso, o leitor já acompanhou boa parte da rotina do autor enquanto ele se droga: aqui é onde o livro pode esbarrar no simples relato e perder força. Oras, não é problema nenhum escrever sobre o seu próprio e antigo vício, mas passar mais de 100 páginas descrevendo a pantomima que é ir de hotel para hotel para encontrar quartos isolados, entrar em contato com os traficantes e fumar pedra rezando por um ataque do coração parece... sensacionalismo? Sinceramente, é difícil dizer.

“Acres of time, a bag of crack, company lined up, and a hotel less than a minute away. I’ve just missed two flights, e-mailed Kate and relinquished any say or stake in our agency, tossed my career down the chute, and stood up my beloved and no doubt frantic boyfriend. I’ve done all these things and I couldn’t be happier”.

Bill Clegg (Divulgação)
Essa rotina é narrada na primeira pessoa. Outros capítulos do livro, escritos em terceira pessoa, revelam pedaços marcantes da infância, adolescência e até da vida adulta do autor, e um episódio particularmente: a dificuldade que ele tinha para urinar quando criança. Há um paralelo muito claro entre a vergonha de ser pego tendo grandes dificuldades para urinar, enquanto criança, e a vergonha de ser pego fumando crack, já adulto e bem sucedido. 

Aqui há uma questão: é complicado definir onde começa e onde termina a tentativa do autor de fazer uma auto-psicanálise e descobrir causas do seu vício, o que seria uma manobra no mínimo evasiva.

O que mais me impressionou durante a leitura foi a ansiedade do autor em relação ao produto que ele, no início, escolheu consumir: a primeira linha diz tudo “I can’t leave and there isn’t enough”. Nunca é o bastante, uma tragada nunca é suficiente, e poucos minutos sem um “hit” parecem (ou ele faz parecer) uma eternidade.

O livro é bem escrito, se utiliza de estruturas variadas, o que é sempre positivo, mas não é genial. Há pouca novidade. E claro, ler as memórias de um maníaco egocêntrico viciado em crack pode não ser a leitura leve e agradável de domingo que você está procurando.

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Portrait of an addict as a young man: a memoir
Bill Clegg
Little, Brown and Co. (2010)
222 páginas

Retrato de um viciado quando jovem
Bill Clegg
Tradução: Julia Romeu
216 páginas
Preço sugerido: R$41,00






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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Trainspotting
Irvine Welsh
Tradução: Daniel Galera e Daniel Pellizzari
Rocco (2004)
352 páginas
Preço sugerido: R$43,00


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Cândido

Passei dez meses trabalhando na Biblioteca Pública do Paraná, na Divisão de Difusão Cultural, num período de transição muito bacana. A BPP deixou de ser apenas um prédio marcante no centro de Curitiba com milhares de livros para se tornar um ponto de cultura importante da capital, tudo isso sob o comando do jornalista Rogério Pereira.

Uma das realizações importantes foi a criação do jornal Cândido, hoje já conhecido no Brasil todo. A fim de fazer uma mini retrospectiva, e aproveitando que agora todas as edições estão disponíveis no site do jornal, listo abaixo a minha contribuição para o projeto. Todos os textos foram editados pelo jornalista Luiz Rebinski Jr, editor do jornal. Sem essa edição, os textos não seriam metade do que são.



Nº 1 - Agosto 2011


“Na verdade, todo livro é um fracasso. Alguns são grandes fracassos. Do ponto de vista do escritor, o livro escrito está sempre aquém do livro imaginado. Então, quando vêm as críticas negativas, embora machuquem, elas são afagos perto das críticas interiores que fazemos. O escritor é um ser fadado a essa insatisfação crônica, que o leva a experimentar-se sempre. Aliás, todo bom livro é um livro experimental, na medida em que tentamos dizer algo pela primeira vez.”

Nº 2 - Setembro 2011


Dos 18 mil livros emprestados por mês nos balcões da Biblioteca Pública do Paraná, mais de 250 vão parar nas mãos de nove técnicos, que têm a missão de tornar os livros utilizáveis novamente


Nicolau, jornal editado por Wilson Bueno entre as décadas de 1980 e 1990, agitou a cena literária brasileira, alcançou tiragens enormes, ganhou diversos prêmios, fez carreira internacional e ainda hoje tem seu nome indissociavelmente ligado à figura de seu editor

Nº 3 - Outubro 2011


Gênero sem tradição no Brasil, a literatura de fantasia tem conquistado milhares de fãs e seus autores, best-sellers nacionais, incutido o prazer da leitura em adolescentes e jovens

Nº 4 - Novembro 2011


Escritor e crítico, Sérgio Rodrigues fala sobre a democratização da “conversa” literária na internet, onde se tornou referência com seu blog Todoprosa, e da rotina de um leitor profissional que tem a difícil tarefa de comentar a cena literária da qual faz parte 

“Não se pode reduzir a crítica literária à “crítica de rodapé”. Esta é um fenômeno do século XX, certo, e tem tanto a ver com a história da literatura quanto com a história do jornalismo — mais até com esta, imagino. Mas a crítica literária existia antes disso e continuou a existir depois. Qualquer texto, seja jornalístico, acadêmico, ensaístico, blogueiro ou o que for, que dê uma contribuição inteligente, bem informada e original à leitura de uma obra literária, é um texto de crítica literária.”

Nº 5 - Dezembro 2011


Um dos autores mais talentosos de sua geração, Michel Laub também tem se destacado comandando disputadas oficinas de criação literária 

“Tudo interessa: ideias, linguagem, ritmo narrativo, história (ou falta de história). Cada escritor opera de um jeito. Tenho a sensação de que meu último livro, Diário da queda, vale mais pelas ideias e a história do que pela linguagem em si. Mas ele não deixa de ter um trabalho até que bastante elaborado de linguagem (custou meses e meses de chateação, posso garantir).”


Dono de uma prosa experimental, pautada pelo humor e situações absurdas, Manoel Carlos Karam também deixou marcas no teatro e na imprensa paranaense

Nº 7 - Fevereiro 2012


Mais do que simples detalhe, capas e projetos gráficos são objeto de fetiche para muitos leitores e podem determinar o sucesso de um livro

Nº 8 - Março 2012


As obras de Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Wilson Bueno e Valêncio Xavier tinham pouca conexão entre si, mas estavam ligadas a um traço marcante da literatura curitibana: o gosto pela experimentação 


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Wilson, Daniel Clowes


1.
O ponto alto da HQ Wilson (Daniel Clowes, Quadrinhos na Cia., 2012) foi um acidente. As mudanças de forma (no traço, nas cores, na própria representação do desenho) saltam aos olhos numa época em que o narrador - qualquer narrador - está sempre sob vigilância. Mudar o registro seria (ou foi) uma forma de andar na linha que separa a genialidade da eficiência, tendendo para a primeira. Saber que isso foi um acidente faz tudo cair na segunda.

2.
Porque sem dúvida Wilson é eficiente: conta uma história interessante, de um personagem marcante, tem seus momentos tristes e momentos engraçados, e um final arrebatador. Além de tudo isso, a mudança de registro.

3.
Wilson começa realista: o registro é o registro de Clowes para uma pessoa normal, digamos, proporcional, praticamente fotográfico. Ele estranhamente começa dizendo “Eu amo as pessoas!”. As páginas são capítulos e são tiras independentes, que juntas formam uma história maior (o que chamam de graphic novel). Nesse mesmo capítulo, após uma mulher falar muito sobre um problema no computador, Wilson conclui: “Meu deus, por que você não cala essa boca?”.

Capítulo 1 (Trecho disponível no site da Companhia das Letras)

4.
No capítulo seguinte, o registro muda. Agora, Wilson é uma pessoinha caricata, que parece menor, num traço bem mais fantasioso. Claramente, um desenho do mesmo Wilson da página anterior. Agora, o personagem nos fala: ei, vejam bem, eu sou um quadrinho. Nesse capítulo, ele começa pessimista, termina pessimista.

Capítulo 2 (Trecho disponível no site da Companhia das Letras)

5.
Na próxima página, o registro muda novamente. Agora, há uma cor dominante e o traço é novamente realista, embora isso não seja regular; há uma mistura de registros em alguma medida não mensurável. De alguma forma, isso fragiliza o que seria uma sacada genial: foi aleatório. Nesta entrevista para a Folha de S. Paulo, o autor diz que fez assim “porque isso meio que replicava o sentimento que você tem quando pensa em si mesmo em determinado dia. Num dia, você se vê sob uma luz negativa; no outro, de outra maneira, numa visão que segue o seu humor. Quis capturar algo sobre a maneira como nos vemos no mundo”. Mas ainda fica aquela coisa: uma ideia tão boa poderia ser usada de maneira muito mais adequada, mais poderosa.

Capítulo 3 (Trecho disponível no site da  Companhia das Letras)
6.
Em mais de um lugar por aí eu li, mas não é muito difícil fazer a inferência (é só olhar bem o retrato da capa): embora Wilson seja da Califórnia, a semelhança física e humorística com Woody Allen é qualquer coisa significativa.

7.
Resumindo, a história é de um personagem que passa o tempo todo tentando recompor laços afetivos, ou, quando coerente, lembrando-se deles (em, por exemplo, “Mãe” e “Casamento”, dois dos mais comoventes capítulos da história). Some-se isso a uma personalidade pessimista, mordaz e cara-de-pau, já dá pra ter uma ideia do personagem.

Daniel Clowes (Foto The Observer)

8.
A (auto)ironia é uma arma eficiente da ficção norte-americana. Woody Allen, ora. Tão presente que um grupo de escritores compôs um movimento para negar a ironia do sistema cultural daquele país, por acreditar em outros caminhos. De qualquer forma, Wilson está bem inserido naquele primeiro grupo. As sacadas ácidas e o humor pessimista e contundente fazem a HQ valer a leitura.

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Wilson
Daniel Clowes
Tradução: Érico Assis
80 páginas
Preço sugerido: R$39,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Zuckerman acorrentado
Philip Roth
Tradução: Alexandre Hubner
552 páginas
Preço sugerido: 49,00

Quer um personagem norte-americano mais marcante do que esse?